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CARLOS HEITOR CONY
Da guerra do Peloponeso à guerra de Bush
- Quantos homens estão na zona vermelha?-
perguntou o general ao coronel.
-5.000 -respondeu o coronel.
-Mas na zona branca temos outros 5.000.
-Mais 5.000 na zona azul
-informou o capitão que estava
abrindo um telegrama que acabara de chegar do Estado Maior.
O general somou mentalmente
os números: 5.000, mais 5.000,
mais 5.000, total de 15 mil homens. O extraordinário esforço
mental foi compensado com um
relax patriótico. As zonas vermelha, branca e azul, "bleu, blanc,
rouge", eram as cores da bandeira
tricolor coberta de tantas e tamanhas glórias. Era um sinal -o general nunca lera o Paulo Coelho,
porque só lia livros de guerra e
não de paz- e instintivamente
adivinhava que se deviam ler os
sinais, interpretá-los e segui-los.
Se alguma dúvida tivera, dúvida
alguma poderia ter diante daquela evidência: era o momento de
atacar.
-Então, o que estamos esperando?
O coronel lembrou que, antes de
atacar, era necessário avaliar as
perdas. E, como não poderia avaliar nem mesmo o que estava fazendo ali, homem pacífico, que
na vida civil administrava a fazenda do avô, na Normandia,
que lhe deixara 5.000 ovelhas e
outros tantos coelhos, transferiu a
pergunta ao capitão, que, sendo
mais moço e precisando fazer carreira, devia saber por que estavam esperando para atacar e, de
quebra, com os últimos informes
do Estado Maior, que recebera informes dos serviços de inteligência e espionagem, estaria apto a
responder quantas seriam as perdas.
-Sem chuva -disse ele- teremos 5.000 perdas. Com chuva,
10 mil perdas.
O general ficou admirado. Como? Como era possível um fator
aleatório como a chuva causar
tantas perdas? Afinal, não estavam no tempo de Tucídides nem
havia mais Peloponeso, os avanços tecnológicos ao longo de tantos séculos aboliram o arco e a flecha, já descobriram a pólvora, o
telégrafo sem fio, a bomba atômica. Quando passara de coronel a
general, aprendera na Escola de
Estado Maior que uma guerra
podia ser decidida por botões.
Apertando um botão azul, podia-se destruir a zona amarela do inimigo; apertando-se o botão vermelho, podia-se estourar o coração industrial do adversário. E vinha um reles capitão, mal saído
dos cueiros da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, lembrar
que a chuva podia dobrar o número de perdas.
Lera, não sabia onde, que a
guerra, qualquer guerra, era uma
estupidez, mas não a esse ponto.
Contudo, em sendo o oficial de
mais alta patente ali na tenda do
Posto Avançado, cumpria-lhe tomar a iniciativa. O diabo era saber que iniciativa deveria tomar.
Em 25 anos de carreira, sempre
que precisava tomar uma iniciativa, tomara a iniciativa de não
fazer nada -e assim subira de tenente a capitão, de capitão a major, de major a coronel, chegara a
general e, se conquistasse o objetivo que lhe fora destinado, poderia
chegar a marechal, apesar das
5.000 ou das 10 mil perdas, que
não ocorreriam por culpa sua,
mas por culpa da chuva.
-Por que não esperamos pelo
boletim meteorológico? -sugeriu
o coronel.
-Boletim o quê? -perguntou
o general,
-A previsão do tempo- traduziu o coronel, que, como criador de ovelhas e coelhos, tinha
certa intimidade com as ciladas
do tempo, perdera 500 coelhos e
outras tantas ovelhas por causa
de um temporal que desabara na
Normandia cinco anos passados.
O general ficou aliviado. Era
um adjutório à sua famosa iniciativa de não fazer nada. Olhou
o relógio. Ligaria a TV e, no jornal das 20h, teria a previsão do
tempo para as próximas horas.
Mas o capitão, mal saído dos
cueiros da Escola Militar, era um
jovem informatizado, trouxera
um notebook, acessara a internet
e garantiu que o tempo era instável, sujeito a chuvas e trovoadas.
-10 mil perdas? -perguntou a
si a mesmo e aos outros o general.
-Depende -disse o capitão.
Se cair chuva, serão 10 mil perdas,
mas as trovoadas não influirão
no resultado e teremos apenas
5.000 perdas.
O general, quando criança, tinha medo das trovoadas e fazia o
sinal da cruz ensinado por sua
avó, que morrera aos 98 anos.
Com quantos ele morreria? Tinha
57 e, com sorte, sem chuva nem
trovoadas, poderia chegar fácil,
fácil aos 75. Não fumava, fazia
exercícios e, uma vez por ano,
descansava três meses na casa de
campo de um cunhado que era
gerente de uma multinacional.
-Então vamos atacar -decidiu o general.
Na trincheira da zona verde, o
soldado Jean Lemartin acabava
de receber carta da sua mulher,
que perguntava quando ele voltaria para casa. A estufa que garantia a calefação do quarto dos meninos estava enguiçada, só ele poderia consertar, não era caso para
comprar outra, a guerra inflacionara todos os preços, uma estufa
daquelas custaria uma fortuna, o
jeito era quebrar o galho e só ele,
marido e soldado, poderia quebrar esse e outros galhos. Se demorasse muito, quem ficaria com
os galhos seria ele.
O corneteiro deu ordem para
atacar. No tempo de Tucídides,
não havia corneteiros, mas a estupidez era a mesma. A zona verde, avançando no meio da chuva,
com trovoadas à distância, foi totalmente dizimada pela zona
amarela do inimigo.
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