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São Paulo, sexta-feira, 21 de fevereiro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Da guerra do Peloponeso à guerra de Bush

- Quantos homens estão na zona vermelha?- perguntou o general ao coronel.
-5.000 -respondeu o coronel. -Mas na zona branca temos outros 5.000.
-Mais 5.000 na zona azul -informou o capitão que estava abrindo um telegrama que acabara de chegar do Estado Maior.
O general somou mentalmente os números: 5.000, mais 5.000, mais 5.000, total de 15 mil homens. O extraordinário esforço mental foi compensado com um relax patriótico. As zonas vermelha, branca e azul, "bleu, blanc, rouge", eram as cores da bandeira tricolor coberta de tantas e tamanhas glórias. Era um sinal -o general nunca lera o Paulo Coelho, porque só lia livros de guerra e não de paz- e instintivamente adivinhava que se deviam ler os sinais, interpretá-los e segui-los. Se alguma dúvida tivera, dúvida alguma poderia ter diante daquela evidência: era o momento de atacar.
-Então, o que estamos esperando?
O coronel lembrou que, antes de atacar, era necessário avaliar as perdas. E, como não poderia avaliar nem mesmo o que estava fazendo ali, homem pacífico, que na vida civil administrava a fazenda do avô, na Normandia, que lhe deixara 5.000 ovelhas e outros tantos coelhos, transferiu a pergunta ao capitão, que, sendo mais moço e precisando fazer carreira, devia saber por que estavam esperando para atacar e, de quebra, com os últimos informes do Estado Maior, que recebera informes dos serviços de inteligência e espionagem, estaria apto a responder quantas seriam as perdas.
-Sem chuva -disse ele- teremos 5.000 perdas. Com chuva, 10 mil perdas.
O general ficou admirado. Como? Como era possível um fator aleatório como a chuva causar tantas perdas? Afinal, não estavam no tempo de Tucídides nem havia mais Peloponeso, os avanços tecnológicos ao longo de tantos séculos aboliram o arco e a flecha, já descobriram a pólvora, o telégrafo sem fio, a bomba atômica. Quando passara de coronel a general, aprendera na Escola de Estado Maior que uma guerra podia ser decidida por botões. Apertando um botão azul, podia-se destruir a zona amarela do inimigo; apertando-se o botão vermelho, podia-se estourar o coração industrial do adversário. E vinha um reles capitão, mal saído dos cueiros da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, lembrar que a chuva podia dobrar o número de perdas.
Lera, não sabia onde, que a guerra, qualquer guerra, era uma estupidez, mas não a esse ponto. Contudo, em sendo o oficial de mais alta patente ali na tenda do Posto Avançado, cumpria-lhe tomar a iniciativa. O diabo era saber que iniciativa deveria tomar. Em 25 anos de carreira, sempre que precisava tomar uma iniciativa, tomara a iniciativa de não fazer nada -e assim subira de tenente a capitão, de capitão a major, de major a coronel, chegara a general e, se conquistasse o objetivo que lhe fora destinado, poderia chegar a marechal, apesar das 5.000 ou das 10 mil perdas, que não ocorreriam por culpa sua, mas por culpa da chuva.
-Por que não esperamos pelo boletim meteorológico? -sugeriu o coronel.
-Boletim o quê? -perguntou o general,
-A previsão do tempo- traduziu o coronel, que, como criador de ovelhas e coelhos, tinha certa intimidade com as ciladas do tempo, perdera 500 coelhos e outras tantas ovelhas por causa de um temporal que desabara na Normandia cinco anos passados.
O general ficou aliviado. Era um adjutório à sua famosa iniciativa de não fazer nada. Olhou o relógio. Ligaria a TV e, no jornal das 20h, teria a previsão do tempo para as próximas horas. Mas o capitão, mal saído dos cueiros da Escola Militar, era um jovem informatizado, trouxera um notebook, acessara a internet e garantiu que o tempo era instável, sujeito a chuvas e trovoadas.
-10 mil perdas? -perguntou a si a mesmo e aos outros o general.
-Depende -disse o capitão. Se cair chuva, serão 10 mil perdas, mas as trovoadas não influirão no resultado e teremos apenas 5.000 perdas.
O general, quando criança, tinha medo das trovoadas e fazia o sinal da cruz ensinado por sua avó, que morrera aos 98 anos. Com quantos ele morreria? Tinha 57 e, com sorte, sem chuva nem trovoadas, poderia chegar fácil, fácil aos 75. Não fumava, fazia exercícios e, uma vez por ano, descansava três meses na casa de campo de um cunhado que era gerente de uma multinacional.
-Então vamos atacar -decidiu o general.
Na trincheira da zona verde, o soldado Jean Lemartin acabava de receber carta da sua mulher, que perguntava quando ele voltaria para casa. A estufa que garantia a calefação do quarto dos meninos estava enguiçada, só ele poderia consertar, não era caso para comprar outra, a guerra inflacionara todos os preços, uma estufa daquelas custaria uma fortuna, o jeito era quebrar o galho e só ele, marido e soldado, poderia quebrar esse e outros galhos. Se demorasse muito, quem ficaria com os galhos seria ele.
O corneteiro deu ordem para atacar. No tempo de Tucídides, não havia corneteiros, mas a estupidez era a mesma. A zona verde, avançando no meio da chuva, com trovoadas à distância, foi totalmente dizimada pela zona amarela do inimigo.


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