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DRAUZIO VARELLA
Álcool e o coração
Quando perguntam se beber faz bem para o coração,
nós, médicos, ficamos numa posição difícil.
Na década de 1930, ao autopsiar alcoólatras com cirrose, um
grupo de patologistas teve a atenção chamada para a relativa ausência de placas de aterosclerose
nas artérias. O álcool dissolveria
as placas? -especularam eles.
Nos anos 1990, pesquisas epidemiológicas reforçaram as bases
do que se convencionou chamar
de "paradoxo francês": a baixa
incidência de doenças cardiovasculares na França, apesar da dieta rica em gorduras característica
dos franceses. O hábito do vinho
às refeições, universal na França,
foi adotado como explicação para
a existência desse paradoxo. Rico
em certos flavonóides, o vinho teria propriedades antioxidantes
que melhorariam a função vascular, reduzindo o número de ataques cardíacos e derrames cerebrais entre seu consumidores.
Três trabalhos importantes conduzidos nos últimos cinco anos,
no entanto, sugeriram que essas
propriedades protetoras não se
restringiam ao vinho -um deles,
publicado na prestigiosa revista
"Circulation", com o título sugestivo de "Vinho, Cerveja e Destilados e o Risco de Infarto do Miocárdio: Uma Revisão Sistemática".
Recentemente, foi publicado o
estudo mais completo sobre o tema. Nele, 38.077 homens de 40 a
75 anos, acompanhados no período de 1986 a 1998, enviavam a cada dois anos informações sobre
seu estado de saúde, estilo de vida, consumo médio de álcool,
concomitância do uso com as refeições e sobre o tipo de bebida ingerida: vinho tinto, branco, cerveja ou destilados.
Os autores padronizaram as
quantidades de álcool presentes
em um drinque de cada bebida
da seguinte forma: uma lata de
355 ml de cerveja: 12,8 g de álcool;
um copo de 120 ml de vinho: 11 g;
uma dose de 50 ml de destilado:
14 g.
No período, ocorreram 1.418 casos de infarto do miocárdio. Abstêmios e os que bebiam em média
menos do que 5 g/dia apresentaram risco semelhante. Nos demais, o risco de infarto caiu gradualmente de modo inverso ao
total de álcool ingerido: no grupo
de 5 a 10 g/dia, a redução de risco
foi de 17%; no de 10 a 15 g/dia, foi
de 31%; e no que bebia 50 g ou
mais por dia (quatro ou mais
drinques diários) a redução foi de
52%.
Os níveis de redução de risco foram similares nas faixas etárias
dos 40 aos 79 anos, e independentes do uso estar ou não associado
às refeições. Nenhuma bebida
mostrou ser superior a outra: vinho, cerveja ou destilados foram
igualmente eficazes na prevenção
de ataques cardíacos, fatais ou
não.
Um dos achados mais importantes foi a confirmação de que a
freqüência do uso guarda relação
direta com os benefícios cardiovasculares: o grupo que bebia
apenas uma ou duas vezes por semana apresentou redução de risco de 17%, contra 34% de queda
entre os que bebiam de três a quatro vezes por semana. Esse achado está de acordo com trabalhos
anteriores, como o projeto Monica conduzido na Austrália: homens que tomam nove ou mais
drinques num único dia por semana apresentam duas vezes
mais ataques cardíacos do que os
abstêmios. Já os que tomam dois
drinques diários, de cinco a seis
vezes por semana, têm o risco diminuído em 64%.
A associação entre uso moderado freqüente de álcool e redução
do risco de infartos do miocárdio,
confirmada num estudo com 12
anos de duração, em que os 38 mil
participantes enviaram mais de
200 mil relatórios para análise,
não pode ser considerada cientificamente irrelevante.
O que os médicos devem fazer
então? Aconselhar os homens acima de 40 anos a beber todos os
dias?
Os Alcoólicos Anônimos -grupo de auto-ajuda que presta serviços de grande alcance na recuperação de dependentes do álcool- consideram que existem
pessoas já nascidas com tendência a abusar do álcool. Para elas,
a única maneira de escapar do alcoolismo é ficar longe da bebida.
Segundo eles, o número desses,
que por razões bioquímicas se encontram em situação de risco para alcoolismo, é substancial: de
dez a 15% da população adulta
(12 a 15 milhões de pessoas no
Brasil).
Os efeitos nocivos do alcoolismo
são muito graves para corrermos
riscos: violência, trauma, acidentes de trânsito, cirrose, câncer, psicoses, dissolução do núcleo familiar (para enumerar alguns).
Substituir uma doença por outras
não é o que a sociedade espera da
medicina.
Como diz Ira Goldberg, da Universidade de Columbia: "Se o álcool fosse uma droga recém-descoberta, nenhuma companhia
farmacêutica ousaria comercializá-la para diminuir a incidência
de doenças cardiovasculares.
Nem os médicos a indicariam para reduzir de 25% a 50% do risco
de infarto, às custas de milhares
de mortes por outras causas".
Pessoalmente, estou de acordo,
mas acho que os dados sobre a redução de risco de doença cardiovascular -principal causa de
morte na sociedade moderna-
associada ao uso de álcool em
quantidades moderadas devem
ser discutidos com clareza, especialmente com as pessoas que já
tiveram infarto ou correm grande
risco de tê-lo.
Desde que não percam o controle, elas podem se beneficiar do uso
de bebidas alcoólicas, sem esquecer que deixar de fumar, controlar o diabetes, a pressão arterial,
os níveis de colesterol e fazer exercício físico são medidas ainda
mais importantes na redução do
risco de doenças cardiovasculares, câncer e muitas outras, com a
vantagem de não provocar ressaca nem dependência química.
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