São Paulo, terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

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FERNANDO BONASSI

Porque matamos nossos filhos

Porque a reprodução é um tipo de imperativo biológico social, mas a manutenção de nossa espécie é um impeditivo de lógica comercial. Porque os preservativos e as fraldas descartáveis têm mais impostos impagáveis do que os pequenos prazeres dos miseráveis. Porque conceber é mais fácil que conceder, e se convencer, mais difícil, ou mais caro, que conhecer...
Porque o prazer até pode ser de graça, ter a sua graça ou ser engraçado, mas as conseqüências inalienáveis desses fatos tendem mesmo a ser desagradáveis para os fetos desgraçados. Porque há desafetos demais e afetos de menos entre os indigentes indiferentes, e a fragilidade dependente de um parente incapaz é capaz de aterrorizar os cuidadores descuidados, especialmente quando a libertinagem dessas cidades do pecado convidam à sacanagem do desleixo.
Porque estamos de problemas até o queixo e, sem sabermos como nadar, demos um jeito de afogar os coitados nessas mágoas e lagoas do despeito generalizado...
Porque são carne de nossa carne, mas não podem nos alimentar de nada. Porque até mesmo o nada em que vivemos significa ou vale alguma coisa nessas bolsas cujos valores não são melhores do que os nossos. Porque a mão fechada é a que cumprimenta na partida e na chegada. Porque a gordura e a doçura das rendas de uns arremessam outros na magreza das ruas da amargura. Porque um teto custa um tanto de loucura, e onde moram dois nem sempre podem caber, estudar ou comer todos (deve haver algo errado com o resultado dessa matemática que não conseguimos entender para explicar!).
Porque em briga de marido e mulher não se mete a colher, a mamadeira ou a choradeira. Porque o amor é um suplício, a paciência, um sacrifício, e eles não param de chamar, de pedir e implorar, fazendo das provações amorosas privações dolorosas!
Porque demoram pouco para nascer perto do muito que nos levam ao crescer e porque o crescimento é horroroso para todos os coadjuvantes envolvidos. Porque o envolvimento talvez seja o único entretenimento dos pobres corações aflitos...
Porque só assim ganhamos dez minutos de fama ocasional no "Jornal Nacional", com um enunciado dramático feito por um casal simpático e cheio de filhos lindos. Então, por força dessas exposições, quando sobrevivem aos nossos golpes, encontram adoções, diversões e atenções que jamais poderíamos ousar proporcionar!
Porque são como bombas de esperança na pança de terroristas recheados de vingança, e a melhor herança que poderíamos lhes deixar foi consumida pelas promissórias, carnês e contas a pagar...
Porque os nossos hormônios e essas camadas de ozônio estão em desalinho, ou desarmonia, e tememos que as nossas crias se tornem esses monstros que se matam por uma marca de tênis, o tamanho do pênis, uma religião, um partido ou uma eleição...
Porque os brinquedos são barulhentos, os lamentos, rabugentos, os tombos, violentos, e os riscos de os perdermos por acaso nos faz cogitar no caso de os perdermos de uma vez; como esses deuses pirados que, ao dar-nos de barato a sorte de viver, dão-nos também de brinde a angústia e a certeza de morrer...
Porque é um desperdício que cresçam para o encontro com balas perdidas, ou meninas amadas achadas em desespero, desemprego ou contravenção...
Porque há uma comoção na beleza da tristeza derradeira que nos faz até gostar da frieza de assassinar, ao menos para podermos lembrar de um primeiro choro verdadeiro (tudo isso é intraduzível, inexplicável e incompreensível aos demais "solteiros responsáveis", já que há mais calmantes do que estimulantes sendo oferecidos para os jovens órgãos púbicos nesses serviços públicos caquéticos).
Porque muitas dessas mulheres esquecidas gostariam apenas que seus meninos queridos fossem mais do que "filhos da mãe"; mas seus amantes e maridos fugidos as deixam de orçamentos partidos, com os braços ocupados pela amamentação e os abraços apertados dos seres paridos entre paredes cimentadas de quartos de pensão.
Porque nem todos podem ser juízes de direitos, atacantes artilheiros, banqueiros subsidiados, deputados imunizados, garotos de programas televisionados, artistas contratados para sempre ou simplesmente pessoas de respeito, já que poucos conseguem sobreviver em meio a tantas taxas inóspitas e salários mixos, que engasgam de necessidades esquisitas o desejo e a inventividade dos funcionários arrivistas...
Porque é a pior coisa que se pode imaginar e por termos a coragem de imaginar o pior, melhor ainda é podermos fazê-lo!
Porque temos o desvelo e o desprendimento de jogar fora tudo de bom que tivermos no momento... Além do mais, o ar anda muito ruim de respirar, com tantas notícias impossíveis de acreditar diante de um futuro que nos faz cada vez mais apontarmos os narizes para trás em nostalgia.
Não se iludam com a calmaria: no dia em que a vida valer a pena, não teremos o menor dó de vivê-la.


@ - fbonassi@uol.com.br

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