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FERNANDO BONASSI
Porque matamos nossos filhos
Porque a reprodução é um
tipo de imperativo biológico
social, mas a manutenção de nossa espécie é um impeditivo de lógica comercial. Porque os preservativos e as fraldas descartáveis
têm mais impostos impagáveis do
que os pequenos prazeres dos miseráveis. Porque conceber é mais
fácil que conceder, e se convencer,
mais difícil, ou mais caro, que conhecer...
Porque o prazer até pode ser de
graça, ter a sua graça ou ser engraçado, mas as conseqüências
inalienáveis desses fatos tendem
mesmo a ser desagradáveis para
os fetos desgraçados. Porque há
desafetos demais e afetos de menos entre os indigentes indiferentes, e a fragilidade dependente de
um parente incapaz é capaz de
aterrorizar os cuidadores descuidados, especialmente quando a libertinagem dessas cidades do pecado convidam à sacanagem do
desleixo.
Porque estamos de problemas
até o queixo e, sem sabermos como nadar, demos um jeito de afogar os coitados nessas mágoas e
lagoas do despeito generalizado...
Porque são carne de nossa carne, mas não podem nos alimentar
de nada. Porque até mesmo o nada em que vivemos significa ou
vale alguma coisa nessas bolsas
cujos valores não são melhores do
que os nossos. Porque a mão fechada é a que cumprimenta na
partida e na chegada. Porque a
gordura e a doçura das rendas de
uns arremessam outros na magreza das ruas da amargura. Porque um teto custa um tanto de
loucura, e onde moram dois nem
sempre podem caber, estudar ou
comer todos (deve haver algo errado com o resultado dessa matemática que não conseguimos entender para explicar!).
Porque em briga de marido e
mulher não se mete a colher, a
mamadeira ou a choradeira. Porque o amor é um suplício, a paciência, um sacrifício, e eles não
param de chamar, de pedir e implorar, fazendo das provações
amorosas privações dolorosas!
Porque demoram pouco para
nascer perto do muito que nos levam ao crescer e porque o crescimento é horroroso para todos os
coadjuvantes envolvidos. Porque
o envolvimento talvez seja o único entretenimento dos pobres corações aflitos...
Porque só assim ganhamos dez
minutos de fama ocasional no
"Jornal Nacional", com um enunciado dramático feito por um casal simpático e cheio de filhos lindos. Então, por força dessas exposições, quando sobrevivem aos
nossos golpes, encontram adoções, diversões e atenções que jamais poderíamos ousar proporcionar!
Porque são como bombas de esperança na pança de terroristas
recheados de vingança, e a melhor herança que poderíamos lhes
deixar foi consumida pelas promissórias, carnês e contas a pagar...
Porque os nossos hormônios e
essas camadas de ozônio estão em
desalinho, ou desarmonia, e tememos que as nossas crias se tornem esses monstros que se matam
por uma marca de tênis, o tamanho do pênis, uma religião, um
partido ou uma eleição...
Porque os brinquedos são barulhentos, os lamentos, rabugentos,
os tombos, violentos, e os riscos de
os perdermos por acaso nos faz
cogitar no caso de os perdermos
de uma vez; como esses deuses pirados que, ao dar-nos de barato a
sorte de viver, dão-nos também
de brinde a angústia e a certeza
de morrer...
Porque é um desperdício que
cresçam para o encontro com balas perdidas, ou meninas amadas
achadas em desespero, desemprego ou contravenção...
Porque há uma comoção na beleza da tristeza derradeira que
nos faz até gostar da frieza de assassinar, ao menos para podermos lembrar de um primeiro choro verdadeiro (tudo isso é intraduzível, inexplicável e incompreensível aos demais "solteiros
responsáveis", já que há mais calmantes do que estimulantes sendo oferecidos para os jovens órgãos púbicos nesses serviços públicos caquéticos).
Porque muitas dessas mulheres
esquecidas gostariam apenas que
seus meninos queridos fossem
mais do que "filhos da mãe"; mas
seus amantes e maridos fugidos
as deixam de orçamentos partidos, com os braços ocupados pela
amamentação e os abraços apertados dos seres paridos entre paredes cimentadas de quartos de
pensão.
Porque nem todos podem ser
juízes de direitos, atacantes artilheiros, banqueiros subsidiados,
deputados imunizados, garotos
de programas televisionados, artistas contratados para sempre ou
simplesmente pessoas de respeito,
já que poucos conseguem sobreviver em meio a tantas taxas inóspitas e salários mixos, que engasgam de necessidades esquisitas o
desejo e a inventividade dos funcionários arrivistas...
Porque é a pior coisa que se pode imaginar e por termos a coragem de imaginar o pior, melhor
ainda é podermos fazê-lo!
Porque temos o desvelo e o desprendimento de jogar fora tudo
de bom que tivermos no momento... Além do mais, o ar anda muito ruim de respirar, com tantas
notícias impossíveis de acreditar
diante de um futuro que nos faz
cada vez mais apontarmos os narizes para trás em nostalgia.
Não se iludam com a calmaria:
no dia em que a vida valer a pena, não teremos o menor dó de vivê-la.
@ - fbonassi@uol.com.br
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