São Paulo, sexta, 21 de fevereiro de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Considerações sobre cinema e traduções

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Dois equívocos, ou melhor, um apenas é muito comum entre críticos, leitores e até autores de literatura. Diz respeito à intraduzibilidade da obra de arte literária, seja ela o romance, a poesia e, em alguns casos, o ensaio. A ``tradução'', no caso, seria para versões em outros idiomas ou para veículos razoavelmente afins, como o cinema, o teatro e, agora, a telenovela.
Nada aborrece mais um autor do que ouvir o equivocado elogio: ``Seu livro (romance, conto ou poema) merece um filme''. A menos que o autor deliberadamente tenha tido o propósito de escrever para o cinema ou a televisão, o falso elogio no fundo é uma restrição grave: é que o leitor ou o crítico sentiram falta da linguagem visual ou porque a ela estão viciados ou porque o livro, como expressão literária, é deficiente na conquista dessa visão interior que, afinal, é o fim último da obra de arte.
A tradução para outro idioma também representa um mal-entendido na maioria dos casos. Excetuam-se, é claro, aquelas traduções criativas que, por serem expressas em linguagem também literária, conservam o ``pathos'', a essência do original.
Dois exemplos saltam da vala comum: a versão inglesa da "Bíblia" feita pelo rei James e a tradução do ``Fausto'', de Goethe, assinada pelo poeta francês Gerard de Nerval. Podemos acrescentar a tradução dos grandes monstros da literatura russa, que tiveram em Merquior de Vogué uma chave e uma solução.
No mais, a tradução busca na maioria das vezes tornar compreensível o enredo -e enredo, paradoxalmente, é quase descartável num poema ou num romance.
Dois exemplos: ``Madame Bovary'', de Flaubert, e "Ana Karenina'', de Tolstói, contam praticamente a mesma história, as mesmas circunstâncias de um mesmo adultério. ``Sonata a Kreutzer'', de Tolstói, e ``Werther'', de Goethe, são enredos quase idênticos, mudando apenas o detalhe da sonata de Beethoven num caso e dos versos de Ossian no outro -ambos nascidos do episódio equivalente de Francesca da Rimini, na ``Divina Comédia''.
Daí que não é o enredo, com seu envolvimento episódico, o termômetro para se julgar a obra literária. Os enredos da totalidade das peças de Shakespeare ou estavam na obra de Tácito, Suetônio etc. ou em livros de má literatura que eram vendidos nas feiras da época.
Quanto à tradução para os gêneros afins (teatro, cinema ou telenovela), também é o enredo que conta, uma vez que a linguagem visual tem seus códigos próprios bem diversos do código literário. Uma coisa é a gente ver uma atriz tentando olhar oblíqua e dissimuladamente e outra é ler que Capitu tinha os olhos oblíquos e dissimulados.
Até mesmo em Shakespeare, que é mais literário do que teatral, podemos buscar o exemplo. Ver um homem no campo de uma batalha clamar por um cavalo não tem a força dramática daquele ``Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!'' que salta do papel e da letra e nos atinge lá no fundo do desespero humano.
Deixando de lado a divagação e entrando no caso concreto da literatura brasileira: até que ponto ela pode ser compreendida e avaliada por leitores de outras línguas e de outro contexto cultural? "Os Sertões'', por exemplo, é um épico que tem dois planos distintos: o da reportagem e o da linguagem. A reportagem pode ser traduzida -e já foi- para diversas línguas. A linguagem euclidiana, áspera como um cipó na famosa imagem, é simplesmente intraduzível. No mesmo caso está o exemplo mais à mão quando se fala em tradução: o ``Ulisses'', com a exceção de haver a versão francesa aprovada e revista pelo próprio Joyce.
No caso da literatura brasileira, mesmo desprezando aquela consideração (aliás injusta) de que o português é o túmulo do pensamento, o que pode interessar ao leitor estrangeiro é mais uma vez e sempre o pitoresco, a paisagem exótica.
José de Alencar é mais consumido do que Machado de Assis. Jorge Amado, na medida em que desce fundo na magia sensual da Bahia, pode ser entendido internacionalmente, com detrimento de suas abundantes passagens de prosa poética, que é uma construção literária de altíssimo nível universal -e acentuo a diferença entre ``internacional'' e ``universal'', o ``um apto a muitos'' da definição aristotélica.
A tradução do veículo literário para o visual é ainda mais problemática. Paulo Francis, há pouco, a respeito da segunda versão de ``Lolita'' para o cinema, dizia que o romance de Nabokov era ``intraduzível''. E olha que a primeira versão foi assinada por Stanley Kubrick, um dos poucos cineastas que merecem a classificação de genial.
A esse respeito, há até aquela regra que a prática vai tornando cada vez mais verdadeira: o bom texto resulta sempre num filme ruim ou medíocre. Os melhores filmes de todos os tempos nascem de idéias e roteiros específicos para o cinema, feitos por uma equipe de profissionais do gênero, equipe da qual o diretor e o produtor frequentes vezes fazem parte. É isso aí.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1996 Empresa Folha da Manhã