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Considerações sobre cinema e traduções
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Dois equívocos, ou melhor,
um apenas é muito comum entre críticos, leitores e até autores de literatura. Diz respeito à
intraduzibilidade da obra de
arte literária, seja ela o romance, a poesia e, em alguns
casos, o ensaio. A ``tradução'',
no caso, seria para versões em
outros idiomas ou para veículos razoavelmente afins, como
o cinema, o teatro e, agora, a
telenovela.
Nada aborrece mais um autor do que ouvir o equivocado
elogio: ``Seu livro (romance,
conto ou poema) merece um
filme''. A menos que o autor
deliberadamente tenha tido o
propósito de escrever para o cinema ou a televisão, o falso
elogio no fundo é uma restrição grave: é que o leitor ou o
crítico sentiram falta da linguagem visual ou porque a ela
estão viciados ou porque o livro, como expressão literária, é
deficiente na conquista dessa
visão interior que, afinal, é o
fim último da obra de arte.
A tradução para outro idioma também representa um
mal-entendido na maioria dos
casos. Excetuam-se, é claro,
aquelas traduções criativas
que, por serem expressas em
linguagem também literária,
conservam o ``pathos'', a essência do original.
Dois exemplos saltam da vala comum: a versão inglesa da
"Bíblia" feita pelo rei James e
a tradução do ``Fausto'', de
Goethe, assinada pelo poeta
francês Gerard de Nerval. Podemos acrescentar a tradução
dos grandes monstros da literatura russa, que tiveram em
Merquior de Vogué uma chave
e uma solução.
No mais, a tradução busca
na maioria das vezes tornar
compreensível o enredo -e
enredo, paradoxalmente, é
quase descartável num poema
ou num romance.
Dois exemplos: ``Madame
Bovary'', de Flaubert, e "Ana
Karenina'', de Tolstói, contam
praticamente a mesma história, as mesmas circunstâncias
de um mesmo adultério. ``Sonata a Kreutzer'', de Tolstói, e
``Werther'', de Goethe, são enredos quase idênticos, mudando apenas o detalhe da sonata
de Beethoven num caso e dos
versos de Ossian no outro
-ambos nascidos do episódio
equivalente de Francesca da
Rimini, na ``Divina Comédia''.
Daí que não é o enredo, com
seu envolvimento episódico, o
termômetro para se julgar a
obra literária. Os enredos da
totalidade das peças de Shakespeare ou estavam na obra
de Tácito, Suetônio etc. ou em
livros de má literatura que
eram vendidos nas feiras da
época.
Quanto à tradução para os
gêneros afins (teatro, cinema
ou telenovela), também é o enredo que conta, uma vez que a
linguagem visual tem seus códigos próprios bem diversos do
código literário. Uma coisa é a
gente ver uma atriz tentando
olhar oblíqua e dissimuladamente e outra é ler que Capitu
tinha os olhos oblíquos e dissimulados.
Até mesmo em Shakespeare,
que é mais literário do que teatral, podemos buscar o exemplo. Ver um homem no campo
de uma batalha clamar por um
cavalo não tem a força dramática daquele ``Um cavalo, um
cavalo, meu reino por um cavalo!'' que salta do papel e da
letra e nos atinge lá no fundo
do desespero humano.
Deixando de lado a divagação e entrando no caso concreto da literatura brasileira: até
que ponto ela pode ser compreendida e avaliada por leitores de outras línguas e de outro
contexto cultural? "Os Sertões'', por exemplo, é um épico
que tem dois planos distintos:
o da reportagem e o da linguagem. A reportagem pode ser
traduzida -e já foi- para diversas línguas. A linguagem
euclidiana, áspera como um
cipó na famosa imagem, é simplesmente intraduzível. No
mesmo caso está o exemplo
mais à mão quando se fala em
tradução: o ``Ulisses'', com a
exceção de haver a versão
francesa aprovada e revista
pelo próprio Joyce.
No caso da literatura brasileira, mesmo desprezando
aquela consideração (aliás injusta) de que o português é o
túmulo do pensamento, o que
pode interessar ao leitor estrangeiro é mais uma vez e
sempre o pitoresco, a paisagem
exótica.
José de Alencar é mais consumido do que Machado de Assis. Jorge Amado, na medida
em que desce fundo na magia
sensual da Bahia, pode ser entendido internacionalmente,
com detrimento de suas abundantes passagens de prosa poética, que é uma construção literária de altíssimo nível universal -e acentuo a diferença
entre ``internacional'' e ``universal'', o ``um apto a muitos''
da definição aristotélica.
A tradução do veículo literário para o visual é ainda mais
problemática. Paulo Francis,
há pouco, a respeito da segunda versão de ``Lolita'' para o
cinema, dizia que o romance
de Nabokov era ``intraduzível''. E olha que a primeira
versão foi assinada por Stanley
Kubrick, um dos poucos cineastas que merecem a classificação de genial.
A esse respeito, há até aquela
regra que a prática vai tornando cada vez mais verdadeira: o
bom texto resulta sempre num
filme ruim ou medíocre. Os
melhores filmes de todos os
tempos nascem de idéias e roteiros específicos para o cinema, feitos por uma equipe de
profissionais do gênero, equipe
da qual o diretor e o produtor
frequentes vezes fazem parte. É
isso aí.
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