São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

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Fascismos (velhos, novos) e o Titanic

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Quando, em 1939, um alto funcionário nazista foi queixar-se, Hitler, num gesto raro, apaziguou: "Deixem Jünger em paz". Em 1945, foi a vez dos comunistas alemães reclamarem, ao que Bertolt Brecht, talvez sem o saber, repetiu as palavras do Führer: "Deixem Jünger em paz". 1
Ernest Jünger, agora, está em paz. O mais velho escritor alemão morreu na terça-feira um mês antes de completar 103 anos. Foi mais do que testemunha deste século, como disse o presidente Roman Herzog: único intelectual sobrevivente ao caso Dreyfus -o rubicão da Era dos Extremos-, atravessou, incólume, sem ostracismos, os furacões ideológicos que a ele sucederam.
Quando completou 100 anos, recebeu em seu elegante refúgio numa aldeia do nordeste alemão a dupla visita de François Mitterrand com Helmut Kohl e, mais tarde, Felipe González. Muito antes, foi anfitrião de Jorge Luís Borges.
Com essas preliminares sobre o culto a Jünger o leitor imaginará um Prometeu humanista, remanescente do liberalismo alemão do século 19. Ao contrário: poeta-aristocrata, esteta da guerra, espécie de herdeiro de Richard Wagner, foi um dos titãs daquela cultura de titãs que produziu o fascismo alemão e a variedade muito especial de comunismo da Alemanha do Leste.
Serviu na famosa Legião Estrangeira, participou das duas guerras mundiais, membro dos grupos de elite ("kommando"), ferido três vezes e, quando Hitler despachou para Paris um grupo de refinados oficiais superiores para lidar com os intelectuais franceses, lá estava Jünger, francófilo e francófono.
Conviveu com Jean Cocteau, porém jamais recebeu os expoentes colaboracionistas como Robert Brasillach (fuzilado em 1945 depois da Libertação). Recentemente, indagado sobre esse desprezo, Jünger esnobou: "Ele não sabia comportar-se à mesa".
Mais tarde, esteve muito próximo dos generais prussianos que conspiraram contra Hitler, por isso, arrolado nos processos de alta traição que se seguiram ao fracassado atentado, Hitler mandou retirá-lo do caso.
Como outros nacionalistas, conservadores e antiliberais, entre eles Carl Schmitt e Heidegger, olhava com simpatia aquela fabulosa mobilização, sem parentesco com o detestado "poder das massas" ("Pöbelherrschaft"). Ao contrário de Heidegger, jamais se filiou ao partido nacional-socialista, e o seu mentor nos anos 30 foi ninguém menos que Ernest Niekisch, líder dos Comunistas Prussianos, estranha mistura de bolchevismo e aristocratismo.
Tão elitista que nenhuma elite o satisfaria, defendia o poder da nobreza ("Ritterschaft"). Seu ideal era o Anarca (Anarch), aristocrata espiritual, ungido pelos seus dotes acima da plebe, com direito a tudo. Detestava o "mecanicismo" propiciado pela tecnologia (como seu inspirador, o protofascista Charles Maurras, e o seu continuador, o terrorista americano pós-fascista Unabomber), assim também a democracia, eleições, liberdade individual, humanismo.
Anti-semita militante e aparentemente arrependido, no pós-guerra retirou da edição das obras completas os ensaios e panfletos contra judeus. A virada, segundo consta dos volumosos diários, deu-se em 1943, em Paris, quando viu lindas jovens obrigadas a usar na roupa a abominável estrela amarela da raça inferior. Um esteta.
Um fascista. Combinação perfeitamente adequada, exemplo perfeito para ilustrar o brilhante ensaio de Umberto Eco, "Ur-Fascism" (Fascismo Ancestral), sobre a multiplicidade e infinitas mutações do fascismo. Baseado na Teoria dos Jogos, Eco mostra como, mesmo sem o braço levantado e outros ícones tradicionais do fascismo, muitos movimentos políticos imbuídos das melhores intenções desembocam no fascismo. 2
A variante moderna não se resume ao Front National, de Le Pen, aos separatistas italianos ou ao velho populismo russo reavivado por Jirinovsky. Os "taquaras" argentinos eram de esquerda, mas antes foram terroristas de direita, assim também os "caras pintadas" que começaram na direita e hoje defendem posições xenófobas, nitidamente antiliberais, não muito distantes dos postulados de certa esquerda extremista latino-americana.
Leio na página 2 do caderno Cotidiano/São Paulo, da última terça-feira, uma articulista que deixou de lado a estridência (que tanto delicia seus inúmeros leitores) para vociferar a mais viciosa peça anti-semita jamais aparecida na grande imprensa brasileira desde as diatribes de Gustavo Barroso (o "gauleiter" do Brasil se os nazi-fascistas ganhassem a guerra).
E lá estava, intacta, agora como vitupério, a questão da "raça endogâmica" que já li em página nobre desta mesma folha em outubro passado. A propósito de quê? Do filme que o judeu Steven Spielberg ousou rodar -"Amistad", sobre um levante de escravos num navio negreiro espanhol. Seria o filme tamanha droga? Ao contrário: a articulista louva o "valor estético que Spielberg manipula com perfeição". Não mencionou a xaropada que Spielberg dirigiu antes, "A Cor Púrpura" (encomendada pelo produtor negro Quincy Jones).
O problema da articulista é este: os US$ 70 milhões de dólares gastos por Spielberg deveriam ter sido doados aos perseguidos de Ruanda ou do Burundi. E que "durante quase um século de apartheid na Africa do Sul, os EUA (e o dinheiro judeu) nunca deram um passo significativo contra o genocídio".
Esse é um engodo histórico que nem Louis Farrakhan ousaria repetir. Grandes nomes do judaísmo progressista sul-africano estiveram à frente do movimento anti-apartheid e, não fosse o eficaz boicote econômico no mundo ocidental (cuja mídia está nas mãos dos judeus, segundo a articulista), a hegemonia racista lá continuaria.
A tônica de todos os fascismos, novos e velhos, estéticos ou psicóticos, é a ojeriza ao conjunto de meios que se chama democracia. Distingue-se basicamente do totalitarismo porque é um sistema de respeitos, baseado nas igualdades que tanto incomodavam Jünger. Na democracia, funciona a intenção do diálogo mesmo entre os contrários, substituído nos fascismos pelo linchamento dos dissidentes.
Na democracia, não podem existir bodes expiatórios, diabolizações, culpas coletivas -esse é o vacilo (e bacilo) totalitário que infecta insidiosamente algumas das mais legítimas proposições modernas.
Para amenizar, como estamos no Carnaval, uma piadinha sobre o filme do momento. O anti-semita chega para o indefectível amigo judeu e lhe diz:
- Os judeus afundaram o Titanic.
- Eu pensava que foi um iceberg.
- Iceberg, Rosenberg, Goldberg -tudo a mesma coisa.
Acrescento um nome: Spielberg.


1. Contado por Ian Buruma, "The New York Review of Books", 4/6/93 ; 2. Este texto, ao que consta, ainda não foi publicado em livro no Brasil; trechos da idéia central foram publicadas em "A Nebulosa Fascista" ( Folha, 14/5/95).



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