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Fascismos (velhos, novos) e o Titanic
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Quando, em 1939, um alto
funcionário nazista foi queixar-se, Hitler, num gesto raro,
apaziguou: "Deixem Jünger
em paz". Em 1945, foi a vez dos
comunistas alemães reclamarem, ao que Bertolt Brecht, talvez sem o saber, repetiu as palavras do Führer: "Deixem
Jünger em paz". 1
Ernest Jünger, agora, está em
paz. O mais velho escritor alemão morreu na terça-feira um
mês antes de completar 103
anos. Foi mais do que testemunha deste século, como disse o
presidente Roman Herzog:
único intelectual sobrevivente
ao caso Dreyfus -o rubicão
da Era dos Extremos-, atravessou, incólume, sem ostracismos, os furacões ideológicos
que a ele sucederam.
Quando completou 100 anos,
recebeu em seu elegante refúgio numa aldeia do nordeste
alemão a dupla visita de François Mitterrand com Helmut
Kohl e, mais tarde, Felipe González. Muito antes, foi anfitrião de Jorge Luís Borges.
Com essas preliminares sobre
o culto a Jünger o leitor imaginará um Prometeu humanista,
remanescente do liberalismo
alemão do século 19. Ao contrário: poeta-aristocrata, esteta da guerra, espécie de herdeiro de Richard Wagner, foi um
dos titãs daquela cultura de titãs que produziu o fascismo
alemão e a variedade muito
especial de comunismo da Alemanha do Leste.
Serviu na famosa Legião Estrangeira, participou das duas
guerras mundiais, membro dos
grupos de elite ("kommando"),
ferido três vezes e, quando Hitler despachou para Paris um
grupo de refinados oficiais superiores para lidar com os intelectuais franceses, lá estava
Jünger, francófilo e francófono.
Conviveu com Jean Cocteau,
porém jamais recebeu os expoentes colaboracionistas como Robert Brasillach (fuzilado
em 1945 depois da Libertação).
Recentemente, indagado sobre
esse desprezo, Jünger esnobou:
"Ele não sabia comportar-se à
mesa".
Mais tarde, esteve muito próximo dos generais prussianos
que conspiraram contra Hitler, por isso, arrolado nos processos de alta traição que se seguiram ao fracassado atentado, Hitler mandou retirá-lo do
caso.
Como outros nacionalistas,
conservadores e antiliberais,
entre eles Carl Schmitt e Heidegger, olhava com simpatia
aquela fabulosa mobilização,
sem parentesco com o detestado "poder das massas" ("Pöbelherrschaft"). Ao contrário de
Heidegger, jamais se filiou ao
partido nacional-socialista, e o
seu mentor nos anos 30 foi
ninguém menos que Ernest
Niekisch, líder dos Comunistas
Prussianos, estranha mistura
de bolchevismo e aristocratismo.
Tão elitista que nenhuma
elite o satisfaria, defendia o
poder da nobreza ("Ritterschaft"). Seu ideal era o Anarca
(Anarch), aristocrata espiritual, ungido pelos seus dotes
acima da plebe, com direito a
tudo. Detestava o "mecanicismo" propiciado pela tecnologia (como seu inspirador, o
protofascista Charles Maurras,
e o seu continuador, o terrorista americano pós-fascista
Unabomber), assim também a
democracia, eleições, liberdade individual, humanismo.
Anti-semita militante e aparentemente arrependido, no
pós-guerra retirou da edição
das obras completas os ensaios
e panfletos contra judeus. A virada, segundo consta dos volumosos diários, deu-se em 1943,
em Paris, quando viu lindas
jovens obrigadas a usar na
roupa a abominável estrela
amarela da raça inferior. Um
esteta.
Um fascista. Combinação
perfeitamente adequada,
exemplo perfeito para ilustrar
o brilhante ensaio de Umberto
Eco, "Ur-Fascism" (Fascismo
Ancestral), sobre a multiplicidade e infinitas mutações do
fascismo. Baseado na Teoria
dos Jogos, Eco mostra como,
mesmo sem o braço levantado
e outros ícones tradicionais do
fascismo, muitos movimentos
políticos imbuídos das melhores intenções desembocam no
fascismo. 2
A variante moderna não se
resume ao Front National, de
Le Pen, aos separatistas italianos ou ao velho populismo russo reavivado por Jirinovsky. Os
"taquaras" argentinos eram de
esquerda, mas antes foram terroristas de direita, assim também os "caras pintadas" que
começaram na direita e hoje
defendem posições xenófobas,
nitidamente antiliberais, não
muito distantes dos postulados
de certa esquerda extremista
latino-americana.
Leio na página 2 do caderno
Cotidiano/São Paulo, da última terça-feira, uma articulista que deixou de lado a estridência (que tanto delicia
seus inúmeros leitores) para
vociferar a mais viciosa peça
anti-semita jamais aparecida
na grande imprensa brasileira
desde as diatribes de Gustavo
Barroso (o "gauleiter" do Brasil se os nazi-fascistas ganhassem a guerra).
E lá estava, intacta, agora
como vitupério, a questão da
"raça endogâmica" que já li
em página nobre desta mesma
folha em outubro passado. A
propósito de quê? Do filme que
o judeu Steven Spielberg ousou
rodar -"Amistad", sobre um
levante de escravos num navio
negreiro espanhol. Seria o filme tamanha droga? Ao contrário: a articulista louva o
"valor estético que Spielberg
manipula com perfeição". Não
mencionou a xaropada que
Spielberg dirigiu antes, "A Cor
Púrpura" (encomendada pelo
produtor negro Quincy Jones).
O problema da articulista é
este: os US$ 70 milhões de dólares gastos por Spielberg deveriam ter sido doados aos perseguidos de Ruanda ou do Burundi. E que "durante quase
um século de apartheid na
Africa do Sul, os EUA (e o dinheiro judeu) nunca deram
um passo significativo contra o
genocídio".
Esse é um engodo histórico
que nem Louis Farrakhan ousaria repetir. Grandes nomes
do judaísmo progressista
sul-africano estiveram à frente
do movimento anti-apartheid
e, não fosse o eficaz boicote
econômico no mundo ocidental (cuja mídia está nas mãos
dos judeus, segundo a articulista), a hegemonia racista lá
continuaria.
A tônica de todos os fascismos, novos e velhos, estéticos
ou psicóticos, é a ojeriza ao
conjunto de meios que se chama democracia. Distingue-se
basicamente do totalitarismo
porque é um sistema de respeitos, baseado nas igualdades
que tanto incomodavam Jünger. Na democracia, funciona
a intenção do diálogo mesmo
entre os contrários, substituído
nos fascismos pelo linchamento dos dissidentes.
Na democracia, não podem
existir bodes expiatórios, diabolizações, culpas coletivas
-esse é o vacilo (e bacilo) totalitário que infecta insidiosamente algumas das mais legítimas proposições modernas.
Para amenizar, como estamos no Carnaval, uma piadinha sobre o filme do momento.
O anti-semita chega para o indefectível amigo judeu e lhe
diz:
- Os judeus afundaram o
Titanic.
- Eu pensava que foi um
iceberg.
- Iceberg, Rosenberg, Goldberg -tudo a mesma coisa.
Acrescento um nome: Spielberg.
1. Contado por Ian Buruma, "The New York Review of Books", 4/6/93 ; 2. Este texto, ao que
consta, ainda não foi publicado em livro no Brasil; trechos da idéia central foram publicadas em
"A Nebulosa Fascista" (
Folha, 14/5/95).
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