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O caboclinho querido
PLÍNIO MARCOS
especial para a Folha
Ele era cantor. Seresteiro. De primeira qualidade. Mas, sobretudo,
era um boêmio. Isso que ele era,
um curtidor da vida. Sempre de
bom humor. Onde chegasse
-com o inseparável violão- estava chegando. Gostava de pescar;
até onde se sabe, era bom pescador. Gostava de cozinhar; era tido
com ótimo cozinheiro. Gostava de
jogar bola; e dizem que, assim como Francisco Alves, era craque.
Ou seja, era um autêntico curtidor da vida o mestre Silvio Caldas,
que acaba de partir dessa para melhor.
E, como todo boêmio que se preza, Silvio Caldas também era um
contador de histórias de primeira.
Lembro de um caso que ele contava sempre. Se não me falha a memória, até gravou um disco só pra
gozar a cara do grande Orlando
Silva, que era meio zangado por
natureza e pegava corda fácil.
Em 1939, a prefeitura do Rio de
Janeiro instituiu um concurso oficial de músicas de carnaval. Tudo
indicava que o vencedor seria o
Orlando, que, além de estar abafando com tudo na época, defendia a famosa "Jardineira", de Benedito Lacerda e Humberto Porto:
"Ô jardineira por que estás tão
triste,
mas o que foi que te aconteceu?
Foi a camélia que caiu do galho,
deu dois suspiros e depois morreu.
Vem jardineira,
vem meu amor.
Não fique triste
que esse mundo é todo seu
E tu é muito mais bonita
que a camélia que morreu".
Essa música é lembrada até hoje.
É cantada em todos os salões de
Carnaval. Nas rádios, não. Calamidade: não há lugar para a música brasileira nas emissoras de rádio do Brasil. Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é que todo o mundo
achava que o Orlando Silva ia ganhar fácil com o concurso, com a
bela "Jardineira". Silvio vinha com
a "Florisbela", de Nassara e Frazão. Era legalzinha, mas não dava
pra fazer frente à concorrente. Porém (e sempre tem um porém),
boêmio escolado, o Silvio era
cheio de truques. E armou uma
mutreta.
O Silvio chamou o Waldemar de
Brito, ídolo do futebol do Rio (ele
que descobriu o Pelé jogando num
timeco de várzea em Bauru e o
trouxe para o Santos). O Waldemar chamou sua curriola: Carreiro, Pirica, Pirilo, Vevé e outros.
Todos craques, ídolos do Flamengo, do Vasco, do Botafogo, do Fluminense. O Waldemar espalhou
os boletos na feira de amostras, a
pedir voto pro Caboclinho. Confiante no seu sucesso e na força da
"Jardineira", o Orlando não se
mexeu.
Resultado: o Silvio Caldas, com a
"Florisbela", levou a melhor e ganhou a parada. Quando contava
esse caso, o Caboclinho ria muito
e arrematava: "Vocês tinham que
ver a cara do Orlando: era só decepção. Dava até dó".
Esse era o Silvio Caldas, o seresteiro.
A última vez que vi o Silvio foi
numa madrugada há uns dois ou
três anos. Eu estava no Gigetto
com um povo. Ele chegou com um
amigo. Quando me viu, parou na
mesa. Fui logo convidando o mestre, com seu amigo, pra sentar
com a gente. E ele, olhando em
volta: "Qual o quê, Plininho! É comer logo e correr: essa gente não
vai dar trégua".
Falou e disse: não deu tempo de
fugir. O pessoal que estava no Gigetto cercou o Caboclinho. Sentaram ele à força. E aí foi broca. Uma
atriz já bem velhota, feia pra chuchu, sentou no colo do seresteiro.
Praticamente, ameaçava violentar
o artista. Ele me suplicou: "Plininho, tira essa cascuda daí, pombas! Estou com quase 90 anos,
acho que tenho direito de escolher!".
Esse era o Silvio Caldas, o boêmio.
Plínio Marcos é autor e diretor de teatro e escreveu, entre outras peças, "Navalha na Carne" e
"Dois Perdidos Numa Noite Suja"
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