São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O caboclinho querido

PLÍNIO MARCOS
especial para a Folha

Ele era cantor. Seresteiro. De primeira qualidade. Mas, sobretudo, era um boêmio. Isso que ele era, um curtidor da vida. Sempre de bom humor. Onde chegasse -com o inseparável violão- estava chegando. Gostava de pescar; até onde se sabe, era bom pescador. Gostava de cozinhar; era tido com ótimo cozinheiro. Gostava de jogar bola; e dizem que, assim como Francisco Alves, era craque.
Ou seja, era um autêntico curtidor da vida o mestre Silvio Caldas, que acaba de partir dessa para melhor.
E, como todo boêmio que se preza, Silvio Caldas também era um contador de histórias de primeira.
Lembro de um caso que ele contava sempre. Se não me falha a memória, até gravou um disco só pra gozar a cara do grande Orlando Silva, que era meio zangado por natureza e pegava corda fácil.
Em 1939, a prefeitura do Rio de Janeiro instituiu um concurso oficial de músicas de carnaval. Tudo indicava que o vencedor seria o Orlando, que, além de estar abafando com tudo na época, defendia a famosa "Jardineira", de Benedito Lacerda e Humberto Porto:
"Ô jardineira por que estás tão triste,
mas o que foi que te aconteceu?
Foi a camélia que caiu do galho,
deu dois suspiros e depois morreu.
Vem jardineira,
vem meu amor.
Não fique triste
que esse mundo é todo seu
E tu é muito mais bonita
que a camélia que morreu".
Essa música é lembrada até hoje. É cantada em todos os salões de Carnaval. Nas rádios, não. Calamidade: não há lugar para a música brasileira nas emissoras de rádio do Brasil. Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é que todo o mundo achava que o Orlando Silva ia ganhar fácil com o concurso, com a bela "Jardineira". Silvio vinha com a "Florisbela", de Nassara e Frazão. Era legalzinha, mas não dava pra fazer frente à concorrente. Porém (e sempre tem um porém), boêmio escolado, o Silvio era cheio de truques. E armou uma mutreta.
O Silvio chamou o Waldemar de Brito, ídolo do futebol do Rio (ele que descobriu o Pelé jogando num timeco de várzea em Bauru e o trouxe para o Santos). O Waldemar chamou sua curriola: Carreiro, Pirica, Pirilo, Vevé e outros. Todos craques, ídolos do Flamengo, do Vasco, do Botafogo, do Fluminense. O Waldemar espalhou os boletos na feira de amostras, a pedir voto pro Caboclinho. Confiante no seu sucesso e na força da "Jardineira", o Orlando não se mexeu.
Resultado: o Silvio Caldas, com a "Florisbela", levou a melhor e ganhou a parada. Quando contava esse caso, o Caboclinho ria muito e arrematava: "Vocês tinham que ver a cara do Orlando: era só decepção. Dava até dó".
Esse era o Silvio Caldas, o seresteiro.
A última vez que vi o Silvio foi numa madrugada há uns dois ou três anos. Eu estava no Gigetto com um povo. Ele chegou com um amigo. Quando me viu, parou na mesa. Fui logo convidando o mestre, com seu amigo, pra sentar com a gente. E ele, olhando em volta: "Qual o quê, Plininho! É comer logo e correr: essa gente não vai dar trégua".
Falou e disse: não deu tempo de fugir. O pessoal que estava no Gigetto cercou o Caboclinho. Sentaram ele à força. E aí foi broca. Uma atriz já bem velhota, feia pra chuchu, sentou no colo do seresteiro. Praticamente, ameaçava violentar o artista. Ele me suplicou: "Plininho, tira essa cascuda daí, pombas! Estou com quase 90 anos, acho que tenho direito de escolher!".
Esse era o Silvio Caldas, o boêmio.


Plínio Marcos é autor e diretor de teatro e escreveu, entre outras peças, "Navalha na Carne" e "Dois Perdidos Numa Noite Suja"


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.