São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2008

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Cinema/estréias - Crítica/"Não Estou Lá"

Haynes usa Dylan para renovar gênero

Ao chamar seis atores para interpretar diferentes fases de Bob Dylan, cineasta radicaliza o terreno das cinebiografias

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Nesses tempos em que tantos filmes buscam legitimidade evocando a expressão "baseado em fatos reais", Todd Haynes ousa seguir o caminho oposto.
Logo no início da projeção de "Não Estou Lá", uma cartela avisa que o filme é "inspirado nas canções e muitas vidas de Bob Dylan". De partida, sabemos que a primeira fonte de inspiração do diretor não foi Bob Dylan, "o homem", mas sua poesia.
Subentende-se, também, que a própria vida é uma ficção sujeita a mutações e reinvenções, difícil de ser representada pelos paradigmas da dramaturgia tradicional.
Antes de ser uma biografia cinematográfica de Bob Dylan, portanto, "Não Estou Lá" é a tentativa de encontrar uma forma capaz de expressar, em filme, uma vida em fluxo. Proposta assumidamente experimental mas, também, pop, procurando conciliar pesquisa de linguagem e comunicação com o público -bem no espírito da própria obra de Dylan e, sobretudo, um desenvolvimento natural da própria obra de Todd Haynes, que já ensaiou abordagens semelhantes em "Superstar: The Karen Carpenter Story" e "Velvet Goldmine".

Transformações
Em "Não Estou Lá", personagens de nomes diferentes (nenhum chamado Bob), vividos por seis atores, representam fases da carreira e diferentes aspectos da personalidade de Bob Dylan.
Eles entram e saem de cena (eventualmente cruzando caminhos) sem uma lógica evidente. No conjunto, porém, traduzem um espírito em eterno estado de transformação, mas que soube manter certa coerência.
Os personagens imaginados por Haynes, evidentemente, não são figuras aleatórias. O menino negro que percorre a América de trem (Marcus Carl Franklin) chama-se Woody Guthrie, lendário cantor folk e maior influência da primeira fase de Dylan. Ben Whishaw é Arthur Rimbaud, outra grande influência do cantor e compositor, que, aliás, adotou o nome Dylan em homenagem ao poeta irlandês Dylan Thomas.
Richard Gere, no segmento mais irregular, é Billy the Kid -referência à participação de Dylan no faroeste de Sam Peckinpah, "Pat Garret & Billy the Kid". Christian Bale, Heath Ledger e Cate Blanchett (em caracterização que lhe valeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza e a indicação ao Oscar na categoria coadjuvante) completam o retrato em forma de caleidoscópio.
Haynes foi bastante criticado por ter dado mais importância ao mito do que aos fatos. Um detalhe importante omitido do filme seria a importância crucial do empresário, Jeff Rosen, nas muitas "reinvenções" da carreira do cantor.
Essa crítica, sutilmente, sugere que "as muitas vidas" de Bob Dylan seriam meras fabricações de marketing e que Haynes, inocentemente, teria comprado essa versão. Ok, pode até ser -mas será mesmo que o autor de letras da dimensão de Dylan seria apenas um artista "fake", produção de um empresário esperto?
"Não Estou Lá", com a proposta que tem, não poderia ser um filme regular -mas também não é ingênuo nem pretende ser uma desconstrução do mito Dylan. Ao contrário, trabalha dentro do mito, a favor dele. Se o resultado é polêmico, é difícil deixar de reconhecer as boas soluções que Haynes encontrou no roteiro, na encenação, na montagem e na direção de atores para propor uma renovação radical daquele que talvez seja o gênero mais engessado entre as produções recentes do cinema americano -a cinebiografia.


NÃO ESTOU LÁ
Produção:
EUA/Alemanha, 2007
Direção: Todd Haynes
Com: Cate Blanchett, Heath Ledger, Richard Gere, Christian Bale
Onde: estréia hoje nos cines Espaço Unibanco, HSBC Belas Artes e Market Place Playarte
Avaliação: bom


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