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CRÍTICA
Meticuloso, diretor se entrega à poesia do balé
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Quem acha que cinema é contar "boas histórias" deve
procurar outro filme já. Se existe
algo que Robert Altman sabe fazer com maestria, habitualmente,
é justamente não contar histórias.
Ora, em "De Corpo e Alma" tudo o que temos é uma companhia
de balé em atividade. Há uma bailarina em ascensão (Neve Campbell). Há um chefe de companhia
(Malcolm McDowell) que controla tudo. Há os coreógrafos que armam seus balés lentamente. Há
bailarinos afastados e substituídos por outros. Ah, e Neve Campbell arranja um namorado.
Mas nada -nem o namoro,
nem o diretor e seus problemas,
nem a chuva que cai num dia em
que o grupo dança a céu aberto-
configura fatos dramáticos.
O que pode então nos atrair a
ver isso? O mesmo que nos levou
(e atrairá sempre) a ver "Hatari!",
por exemplo: estamos diante de
fatos corriqueiros, mas narrados
de modo tão encantador que nem
nos mexemos na poltrona.
A maneira como Malcolm
McDowell -magnífico: à moda
de Burt Lancaster, quanto mais
envelhece, melhor fica- senta e
dá instruções à companhia, um
acidente com uma bailarina, intrigas na corte: o que nos é dado a
ver são as coisas mais comuns do
mundo (da dança), mas são únicas, porque são verdadeiras.
Uma parte dessa verdade vem
de Neve, responsável pelo fio de
história, pois foi bailarina e só se
lançou como atriz após ser forçada a interromper a carreira.
A principal parte de verdade, no
entanto, vem mesmo de Altman,
da meticulosa convicção com que
nos mostra um bailado: do plano
geral aos pés da bailarina, desde
que é uma simples idéia na cabeça
do coreógrafo até que se torna um
concerto de corpos, música, luzes,
espaço, passando por vários estágios intermediários.
No original, o filme se chama "A
Companhia". É um nome mais
apropriado. Altman fala do balé
como arte coletiva, como o cinema. Altman fala do cinema através do balé, e do balé através do cinema. Na companhia, não há o
gênio criador se não existe a bailarina; não há bailarina se não há
músico para fazer o acompanhamento; não há músico se não há
administradores etc. É possível
que essa proximidade entre as
duas artes tenha favorecido o resultado final. Mas a beleza vem toda do balé -o assunto, afinal de
contas- e nunca do cinema.
Altman, cada vez mais próximo
de Jean Renoir, parece ver no cinema um instrumento a serviço
do mundo real, antes de uma arte.
E cada vez mais deixa que o mundo seja complexo e se entrega à
completa simplicidade do filmar.
Talvez por isso seu filme seja tão
poético: porque permite a seu objeto, o balé, ser em sua plenitude.
De Corpo e Alma
The Company
Direção: Robert Altman
Produção: EUA/Alemanha, 2003
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Espaço Unibanco e Lumière
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