São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2004

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CRÍTICA

Meticuloso, diretor se entrega à poesia do balé

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Quem acha que cinema é contar "boas histórias" deve procurar outro filme já. Se existe algo que Robert Altman sabe fazer com maestria, habitualmente, é justamente não contar histórias.
Ora, em "De Corpo e Alma" tudo o que temos é uma companhia de balé em atividade. Há uma bailarina em ascensão (Neve Campbell). Há um chefe de companhia (Malcolm McDowell) que controla tudo. Há os coreógrafos que armam seus balés lentamente. Há bailarinos afastados e substituídos por outros. Ah, e Neve Campbell arranja um namorado.
Mas nada -nem o namoro, nem o diretor e seus problemas, nem a chuva que cai num dia em que o grupo dança a céu aberto- configura fatos dramáticos.
O que pode então nos atrair a ver isso? O mesmo que nos levou (e atrairá sempre) a ver "Hatari!", por exemplo: estamos diante de fatos corriqueiros, mas narrados de modo tão encantador que nem nos mexemos na poltrona.
A maneira como Malcolm McDowell -magnífico: à moda de Burt Lancaster, quanto mais envelhece, melhor fica- senta e dá instruções à companhia, um acidente com uma bailarina, intrigas na corte: o que nos é dado a ver são as coisas mais comuns do mundo (da dança), mas são únicas, porque são verdadeiras.
Uma parte dessa verdade vem de Neve, responsável pelo fio de história, pois foi bailarina e só se lançou como atriz após ser forçada a interromper a carreira.
A principal parte de verdade, no entanto, vem mesmo de Altman, da meticulosa convicção com que nos mostra um bailado: do plano geral aos pés da bailarina, desde que é uma simples idéia na cabeça do coreógrafo até que se torna um concerto de corpos, música, luzes, espaço, passando por vários estágios intermediários.
No original, o filme se chama "A Companhia". É um nome mais apropriado. Altman fala do balé como arte coletiva, como o cinema. Altman fala do cinema através do balé, e do balé através do cinema. Na companhia, não há o gênio criador se não existe a bailarina; não há bailarina se não há músico para fazer o acompanhamento; não há músico se não há administradores etc. É possível que essa proximidade entre as duas artes tenha favorecido o resultado final. Mas a beleza vem toda do balé -o assunto, afinal de contas- e nunca do cinema.
Altman, cada vez mais próximo de Jean Renoir, parece ver no cinema um instrumento a serviço do mundo real, antes de uma arte. E cada vez mais deixa que o mundo seja complexo e se entrega à completa simplicidade do filmar. Talvez por isso seu filme seja tão poético: porque permite a seu objeto, o balé, ser em sua plenitude.


De Corpo e Alma
The Company
    
Direção: Robert Altman
Produção: EUA/Alemanha, 2003
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Espaço Unibanco e Lumière



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