São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2004

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"VIVA VOZ"

Comédia burlesca de Paulo Morelli sofre com linguagem publicitária

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Viva Voz" esbanja verniz e paramentos visuais adequados para, pelo menos, cinco modalidades de publicidade filmada. Itens como moda feminina, celulares, serviços bancários, bronzeador e conscientização quanto aos perigos do trânsito são perfeitamente embrulhados para venda. Paulo Morelli é membro da produtora O2, referência na publicidade brasileira. Lá, o diretor construiu sólida carreira.
Na história criada por Morelli, Duda (Dan Stulbach) é um empresário que está perto de receber, ilegalmente, muito dinheiro. Inseguro, ele se sente culpado pela morte do irmão, faz terapia e tem um caso extraconjugal ao qual quer abdicar. Duda visa assumir, rico, vida nova e honesta ao lado da mulher. Acidentalmente, seu telefone celular é ativado. A mulher ouvirá todas as suas ações, por horas, sem que ele saiba. A partir daí, um círculo negro de eventos conturbará o enredo.
Teremos, em síntese, uma história sobre pactos de confiança quebrados. São tratados de plástico, compartilhados por humanos de plástico, moradores de uma cidade plastificada: todos rumam ao derretimento, em trajetória burlesca. Morelli implanta na moral do filme um arrivismo caricatural e alienado de uma São Paulo amputada das janelas dos carros.
Os espaços internos dos veículos são fartamente filmados, de forma asfixiante. Não há brechas para o que os vidros têm a dizer. Quando dizem algo, o território urbano, quase desabitado, lembra o interior de uma maquete. Estamos em outro mundo, logo se vê.
O diretor provavelmente pretendeu refletir nessa zona, meio ficção científica, os contornos dos vícios de uma suposta classe média paulistana frívola, consumista e aprisionada por aparatos tecnológicos. Morelli, porém, reduz essa gente a um grupo de bonecos inofensivos. A tensão cômica é frágil. Afetividade e traumas são escarnecidos por meio de humor raquítico, baseado em um anedotário erótico ressequido em banalidade. Todos os gestos e formas perdem expressividade no olhar que Morelli dirige às criaturas sintéticas que ele deseja derreter.
O filme não manipula como fetiche apenas a classe média. Faz o mesmo com a imagem, que emudece em pálido artificialismo esverdeado. O diretor mostra-se interessado em acrobacias e filtros, mas nunca na vocação que planos possuem para comunicar, omitir ou iludir. Gratuita, a câmera filma intimamente uma calota em movimento e passa pelo buraco de uma fechadura. Por quê?
Supõe-se: não estivemos somente no mundo de pesadelos indolores de uma realidade paulistana reproduzida em estranhas próteses. Fizemos um tour pelo mundo que Morelli, aparentemente, habituou-se a visualizar e revestir, via linguagem de cinema, em sua carreira publicitária.


Viva Voz
 
Direção: Paulo Morelli
Produção: Brasil, 2003
Com: Dan Stulbach, Vivianne Pasmanter, Graziella Moretto
Quando: a partir de hoje nos cines Anália Franco, Tamboré e circuito



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