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CARLOS HEITOR CONY
Flag
Flag enrolara-se nos fiapos
da velha manta, a baba vidrada caindo-lhe dos cantos da
boca. O focinho tremeu quando
ouviu a porta da rua bater. Ouviu
a voz:
- Onde ela está?
Abriu os olhos para ver o dono.
Não foi preciso. O homem ajoelhou-se junto dela, e a mão, conhecida e forte, tocou em seu focinho.
- Desde quando ela ficou assim?
- Desde que você saiu.
A mulher deu as costas, afastando-se.
Geraldo arrumou a manta para
proteger o corpo da cachorrinha.
Flag fechou os olhos. Sabia que o
dono havia chegado e que agora
tudo seria bom. Sentiu a mão arrumar a coberta de encontro a
seu corpo.
- Vou chamar o veterinário.
- Você tem dinheiro?
- Tenho.
- Sempre há dinheiro para essas porcarias!
- Fiz um extra na rádio. Me
arranje uma coberta maior, ela
está com arrepios.
A mulher voltou com um trapo
esfarrapado.
- Toma!
Geraldo sacudiu o pano com
raiva, teve vontade de atirá-lo na
cara da mulher. Controlou-se.
Precisava dela, como aliada.
- Isso não serve!
Foi à cama, retirou o cobertor
sob a colcha. A mulher olhou-o
com ódio.
- Vai sujar o cobertor!
- Não amola!
Abaixou-se junto à cachorrinha, mudou-a de coberta. Flag
rosnou, o incômodo da mudança
ou o prazer do cobertor.
- Fique quietinha que vou
chamar o doutor. Ele vem depressa, e Flag vai ficar boa...
A mulher levantou a voz:
- Não vai dizer que o doutor
vem aqui! Quando sou eu que estou doente, você me obriga a ir ao
consultório, poupar o dinheiro da
visita!
- Mas ela está doente, muito
doente mesmo!
Procurou no caderno de endereços o número do veterinário.
Olhou o telefone e pensou: "Quem
sabe?". Perguntou à mulher:
- Alguém telefonou?
- Da Sociedade dos Músicos.
Você está atrasado nas mensalidades.
Aquilo era um código, o código
de Marlene. Quando, por qualquer motivo, ela tivesse de avisá-lo sobre um encontro, haveria o
telefonema. Marlene diria, a voz
profissional: "Aqui é da Sociedade dos Músicos, o pianista Geraldo Albuquerque está atrasado
nos pagamentos, deve o mês de
abril".
Isso tinha uma vantagem. A
mulher gostava de receber telefonemas que cobrassem dívidas, era
uma forma de humilhar o homem, atirar na cara: "Pague e
não bufe!". Não suspeitaria que,
entre telefonemas assim, estaria a
voz de uma mulher -de Marlene- pedindo, exigindo-lhe o homem.
- Vou providenciar. Primeiro,
tenho de chamar o veterinário.
Custou a achar. Ligou para o
consultório, ainda não tinha chegado, procurou na residência, havia saído para outra consulta.
- Pode me dar o local onde ele
se encontra?
Do outro lado, a voz irritou-se.
- É urgente, preciso localizá-lo!
Tomou nota do telefone afinal
obtido e discou outra vez.
- Desculpe, doutor, mas é urgente. Flag está morrendo.
O veterinário custou a identificar o dono e o cão. Prometeu aparecer, tão logo ficasse livre.
- Mas, olha, eu aumentei os
preços das visitas, sabe, a inflação...
- Não tem importância, eu pago o que o senhor quiser, salve a
minha cachorrinha.
Voltou ao quarto e procurou o
focinho de Flag. Dos cantos da boca a baba crescera outra vez, os
olhos cerrados, ele tentou abrir
uma das pálpebras, notou que a
cachorrinha fazia força para não
deixar abri-la. Até que obteve um
pedaço de olho: vidrado, distante.
- Minha filhinha...
A mulher pisava o chão com
mais força, arrastando os chinelos puídos.
- Você não vai pagar a Sociedade? Olha que te expulsam, e aí
você perde o direito ao seguro de
vida!
- Já vou!
Suspendeu o corpo da cachorrinha, colocou-o na própria cama.
Apertou o cobertor de encontro
ao corpo do animal.
- Fica aqui, o doutor já vem,
vai trazer um remédio, e Flag vai
ficar boa. Amanhã vamos dar um
passeio, vou te levar em Santa Teresa, Flag vai andar no bondinho...
Flag gostava de andar no bondinho de Santa Teresa. Geraldo a
habituara àquele tipo de passeio,
o mais barato que podia dar com
ela.
- "Bem, agora vamos resolver o
caso de Marlene!"
A agitação com que consumira
a noite, a aflição da manhã atrás
de Marlene -haviam passado.
Sentia agora, no fundo do peito,
um pouco de raiva de tudo.
- "Vai ver que, enquanto eu a
fiscalizava, na rua da Tijuca,
Marlene me telefonava. E eu tão
perto dela! E Flag doente!"
Tinha de inventar um pretexto,
telefonar para Marlene de outro
lugar qualquer. Ela lhe telefonara, tomara a iniciativa. Deus existia!
- Vou lá fora um instante. Tenho de...
Habituado a arranjar desculpas parecidas, surpreendeu-se dizendo a verdade:
- ... tenho de dar um telefonema!
A mulher fez cara de idiota:
- E não tem telefone aqui? Para que ir na rua?
Geraldo sentiu que, afinal, não
adiantava mentir nem telefonar
para Marlene. Encarou a mulher
sem ódio, mas mesmo assim ela
compreendeu. Depois, abanou os
ombros e voltou à cachorrinha.
"Marlene que espere, afinal, Flag
precisa de mim."
Despiu o paletó. Ajeitou os travesseiros junto à cabeceira da cama e deitou-se ao lado.
- Estou aqui, filhinha, estou
aqui! Fique quietinha que eu não
vou deixar que nada te aconteça!
A cachorrinha percebera a proximidade do dono, fez um movimento com o focinho na direção
dele. Geraldo segurou-a, colocou-a no colo, apertando-a contra o
peito. Apertou tanto que começou
a sentir: o calor do animal atravessava o cobertor e aquecia-o
também.
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