São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Flag

Flag enrolara-se nos fiapos da velha manta, a baba vidrada caindo-lhe dos cantos da boca. O focinho tremeu quando ouviu a porta da rua bater. Ouviu a voz:
- Onde ela está?
Abriu os olhos para ver o dono. Não foi preciso. O homem ajoelhou-se junto dela, e a mão, conhecida e forte, tocou em seu focinho.
- Desde quando ela ficou assim?
- Desde que você saiu.
A mulher deu as costas, afastando-se.
Geraldo arrumou a manta para proteger o corpo da cachorrinha. Flag fechou os olhos. Sabia que o dono havia chegado e que agora tudo seria bom. Sentiu a mão arrumar a coberta de encontro a seu corpo.
- Vou chamar o veterinário.
- Você tem dinheiro?
- Tenho.
- Sempre há dinheiro para essas porcarias!
- Fiz um extra na rádio. Me arranje uma coberta maior, ela está com arrepios.
A mulher voltou com um trapo esfarrapado.
- Toma!
Geraldo sacudiu o pano com raiva, teve vontade de atirá-lo na cara da mulher. Controlou-se. Precisava dela, como aliada.
- Isso não serve!
Foi à cama, retirou o cobertor sob a colcha. A mulher olhou-o com ódio.
- Vai sujar o cobertor!
- Não amola!
Abaixou-se junto à cachorrinha, mudou-a de coberta. Flag rosnou, o incômodo da mudança ou o prazer do cobertor.
- Fique quietinha que vou chamar o doutor. Ele vem depressa, e Flag vai ficar boa...
A mulher levantou a voz:
- Não vai dizer que o doutor vem aqui! Quando sou eu que estou doente, você me obriga a ir ao consultório, poupar o dinheiro da visita!
- Mas ela está doente, muito doente mesmo!
Procurou no caderno de endereços o número do veterinário. Olhou o telefone e pensou: "Quem sabe?". Perguntou à mulher:
- Alguém telefonou?
- Da Sociedade dos Músicos. Você está atrasado nas mensalidades.
Aquilo era um código, o código de Marlene. Quando, por qualquer motivo, ela tivesse de avisá-lo sobre um encontro, haveria o telefonema. Marlene diria, a voz profissional: "Aqui é da Sociedade dos Músicos, o pianista Geraldo Albuquerque está atrasado nos pagamentos, deve o mês de abril".
Isso tinha uma vantagem. A mulher gostava de receber telefonemas que cobrassem dívidas, era uma forma de humilhar o homem, atirar na cara: "Pague e não bufe!". Não suspeitaria que, entre telefonemas assim, estaria a voz de uma mulher -de Marlene- pedindo, exigindo-lhe o homem.
- Vou providenciar. Primeiro, tenho de chamar o veterinário.
Custou a achar. Ligou para o consultório, ainda não tinha chegado, procurou na residência, havia saído para outra consulta.
- Pode me dar o local onde ele se encontra?
Do outro lado, a voz irritou-se.
- É urgente, preciso localizá-lo!
Tomou nota do telefone afinal obtido e discou outra vez.
- Desculpe, doutor, mas é urgente. Flag está morrendo.
O veterinário custou a identificar o dono e o cão. Prometeu aparecer, tão logo ficasse livre.
- Mas, olha, eu aumentei os preços das visitas, sabe, a inflação...
- Não tem importância, eu pago o que o senhor quiser, salve a minha cachorrinha.
Voltou ao quarto e procurou o focinho de Flag. Dos cantos da boca a baba crescera outra vez, os olhos cerrados, ele tentou abrir uma das pálpebras, notou que a cachorrinha fazia força para não deixar abri-la. Até que obteve um pedaço de olho: vidrado, distante.
- Minha filhinha...
A mulher pisava o chão com mais força, arrastando os chinelos puídos.
- Você não vai pagar a Sociedade? Olha que te expulsam, e aí você perde o direito ao seguro de vida!
- Já vou!
Suspendeu o corpo da cachorrinha, colocou-o na própria cama. Apertou o cobertor de encontro ao corpo do animal.
- Fica aqui, o doutor já vem, vai trazer um remédio, e Flag vai ficar boa. Amanhã vamos dar um passeio, vou te levar em Santa Teresa, Flag vai andar no bondinho...
Flag gostava de andar no bondinho de Santa Teresa. Geraldo a habituara àquele tipo de passeio, o mais barato que podia dar com ela.
- "Bem, agora vamos resolver o caso de Marlene!"
A agitação com que consumira a noite, a aflição da manhã atrás de Marlene -haviam passado. Sentia agora, no fundo do peito, um pouco de raiva de tudo.
- "Vai ver que, enquanto eu a fiscalizava, na rua da Tijuca, Marlene me telefonava. E eu tão perto dela! E Flag doente!"
Tinha de inventar um pretexto, telefonar para Marlene de outro lugar qualquer. Ela lhe telefonara, tomara a iniciativa. Deus existia!
- Vou lá fora um instante. Tenho de...
Habituado a arranjar desculpas parecidas, surpreendeu-se dizendo a verdade:
- ... tenho de dar um telefonema!
A mulher fez cara de idiota:
- E não tem telefone aqui? Para que ir na rua?
Geraldo sentiu que, afinal, não adiantava mentir nem telefonar para Marlene. Encarou a mulher sem ódio, mas mesmo assim ela compreendeu. Depois, abanou os ombros e voltou à cachorrinha. "Marlene que espere, afinal, Flag precisa de mim."
Despiu o paletó. Ajeitou os travesseiros junto à cabeceira da cama e deitou-se ao lado.
- Estou aqui, filhinha, estou aqui! Fique quietinha que eu não vou deixar que nada te aconteça!
A cachorrinha percebera a proximidade do dono, fez um movimento com o focinho na direção dele. Geraldo segurou-a, colocou-a no colo, apertando-a contra o peito. Apertou tanto que começou a sentir: o calor do animal atravessava o cobertor e aquecia-o também.


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