São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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ARTIGO

Biografia mostra que o escritor inglês uniu-se aos nazistas por alienação

"P.G. Wodehouse" traz à tona a vida de um gênio esquecido

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA FOLHA

A literatura é uma senhora irônica e cruel. Em 1867, Émile Zola afirmava que Baudelaire não deixaria qualquer rasto. Iguais sentenças foram ditas por iguais sábios, a respeito de Dickens, Conrad ou Faulkner. O tempo veio e repôs tudo: reputação, justiça, verdade. O tempo é sábio. O tempo é mais sábio que os sábios.
Mas nem sempre. Casos existem em que o tempo passou ao lado. Quem, hoje, lê Max Beerbohm? Aliás, quem conhece Max Beerbohm, sublime criatura que Oscar Wilde, muito acertadamente, louvava sem limites? Pior: quem lê ainda P.G. Wodehouse, escritor de cabeceira para George Orwell, Evelyn Waugh -e leitura improvável dos improváveis T.S. Eliot ou Ludwig Wittgenstein?


Obra de Wodehouse inclui 97 romances, 28 musicais, 16 peças de teatro e seis roteiros de cinema


Não, não existem desculpas. Sobre Beerbohm, N. John Hall escreveu biografia breve e luminosa ("Max Beerbohm: A Kind of Life", Yale University Press). Sobre P.G. Wodehouse, o relato definitivo foi editado agora, em Londres. Robert McCrum, jornalista do "Observer", legou 528 páginas sobre a vida monumental (e trágica) de um gênio absoluto. Título simples: "P.G. Wodehouse: A Life". E que vida, essa.
Pelham Grenville Wodehouse nasceu na Inglaterra da rainha Vitória, corria 1881. A infância foi solitária e infeliz, com pais distantes (no duplo sentido do termo) que deixaram a Wodehouse uma pesada herança: viver e sobreviver num mundo desabitado de afeto. Wodehouse podia ter escolhido o caminho mais fácil: o caminho da marginalidade, ou da errância. Preferiu a literatura, recriando por escrito a realidade leve e solar que lhe faltava. Como Jorge Luis Borges, a literatura, para Wodehouse, bastava-se a si mesma, criando seu próprio universo e, no limite, sua própria verdade.
Wodehouse nasceu no mesmo ano de Picasso ou Bartók. Mas, ao contrário destes nomes, preferiu não trilhar a estrada modernista. Wodehouse cresceu nos inícios do século -a longa tarde eduardiana- e esse mundo foi seu até o fim. Suas histórias, polvilhadas por escolas e seus mestres, tias e seus mordomos, aventureiros e seus desastres, são narrativas leves, que sopram como uma brisa, servidas por uma prosa de ritmo poético, musical, inventivo. E absurdamente hilariante. Mais do que isso: hilariante e plausível, uma combinação só acessível aos gênios.
Flaubert disse um dia que a boa escrita exige uma boa rotina. Wodehouse é exemplo máximo dessa máxima exemplar. Sua vida se reduz a seu trabalho criativo, cumprido como ritual diário. Mulher, família -um distante rumor. Não admira que este radical isolamento -este radical solipsismo- acabasse por trazer um preço. O preço chegou com a Segunda Guerra Mundial.
Pergunta: como é possível ser um escritor apolítico no mais político dos séculos? Em 1940, Wodehouse se confrontou com a resposta. Os nazistas conquistavam a Europa, França incluída, onde Wodehouse passara a residir. O escritor encarou o fato como pequeno distúrbio na normalidade dos dias. Adaptou-se. Quando foi preso, fez o que sempre fez: adaptou-se novamente. Mesmo no cativeiro -um cativeiro a 50 quilômetros de Auschwitz- continuou escrevendo, terminando, aliás, um dos seus melhores livros, "Money in the Bank". Mas as qualidades humorísticas anteriores a 1939 eram agora vistas de outra forma por uma Inglaterra sitiada (e bombardeada) noite e dia. Como dizem os ingleses, "no laughing matter".
O problema atingiu dramáticas proporções quando as autoridades nazistas, conscientes da popularidade de Wodehouse, resolveram utilizar o escritor em transmissões radiofônicas, diretamente de Berlim, para o mundo anglo-americano. Wodehouse, num misto de insensatez e estupidez, aceitou o jogo, acreditando que tudo não passava de um. Instalado no melhor hotel da capital, passou a descrever suas experiências de guerra no tom cômico e delirante de sempre. Desta vez, o mundo não riu.
Não riu e acusou Wodehouse das maiores vilanias. Um "traidor", uma "marionete", um "oportunista" que Hitler (e Goebbels) manipulou com prazer. O caso dividiu jornais. Dividiu o Parlamento. Enfureceu Churchill. Wodehouse se explicou como pôde. Mas o mal estava feito. Depois de 1945, Wodehouse não mais voltou à Inglaterra. Morreria nos Estados Unidos, em 1975. No dia de São Valentim.
É injusto confundir a ingenuidade de Wodehouse (até ao fim, "uma criança crescida", na opinião de seus próximos) com um ato de traição à pátria. Robert McCrum dedica cem páginas ao caso e iliba o autor. Com razão: irônica e tragicamente, a força da escrita de Wodehouse, só possível graças a sua alienação em face da realidade, foi sua fraqueza em momento decisivo.
Trinta anos depois da morte, o que fica, então? Felizmente, fica o essencial. Em Inglaterra, não é exagero afirmar que Wodehouse ombreia com Shakespeare ou Dickens, embora especialistas, acadêmicos e outras múmias se recusem a aceitar o fato. E suas personagens (como Bertie Wooster, Jeeves, Psmith) fazem parte do cânone (como Hamlet ou Scrooge). Consultem o "Oxford English Dictionary": 1.600 citações são retiradas da obra de Wodehouse.
E que obra: 97 romances, 28 musicais, 16 peças de teatro, seis roteiros de cinema. Os artigos de jornal são incontáveis (milhares, milhares). As vendas de seus livros andam, algures, na estratosfera dos milhões. Voltar a lê-lo, hoje, é um prazer para qualquer mente civilizada: Wodehouse criou uma linguagem, um tom. Robert McCrum acredita que Wodehouse ficará como um dos grandes do século 20. Lendo esta biografia, e relendo suas principais obras (como "The Inimitable Jeeves" e "The Code of the Woosters", que terminei em lágrimas), sinto a estranha tentação de dizer que Wodehouse foi, simplesmente, o maior.

João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
P.G. Wodehouse: A Life
Autor: Robert McCrum
Editora: Viking
Quanto: 20 libras (R$ 91; 528 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.co.uk


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