São Paulo, quinta, 21 de maio de 1998

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CANNES 98
Taiwan apresenta primeiro favorito do festival

AMIR LABAKI
enviado especial a Cannes


Cannes-98 já tem um favorito. Não, ainda não é a vez do dinamarquês Lars Von Trier. "Idioterne" (Os Idiotas) fracassou retumbantemente ontem (leia abaixo).
Um filme em tudo oposto ao de Trier veio por fora e se posicionou com grandes chances para os prêmios máximos do festival: "Flowers of Shanghai" (Flores de Xangai), do cineasta de Taiwan Hou Hsiao-hsien (lê-se rou tiao-tien).
Hsiao-hsien é desconhecido no Brasil, mas cultuado na Ásia e na Europa. Seus filmes jamais alcançaram nosso circuito comercial, mesmo alguns tendo sido exibidos na Mostra Internacional de São Paulo.
"Cidade da Tristeza", um compassado épico familiar que resume este século em Taiwan, arrebatou em 1989 o Leão de Ouro de Veneza. Os três filmes que rodou desde então concorreram em Cannes. "O Mestre das Marionetes" (93) valeu-lhe um Prêmio do Júri.
O cinema de Hsiao-hsien é árido, compassado, minimalista. São filmes de cenas alongadas, poucos cortes e ênfase no diálogo.
As primeiras obras privilegiavam quadros estáticos, com raros movimentos de câmera. Hsiao-hsien progressivamente foi libertando sua câmera, passando a estruturar seu filmes por meio de meticulosos planos-sequência.
"Flowers of Shanghai" apresenta 42 planos em duas horas e quatro minutos de projeção (um filme de narrativa tradicional tem em média dez vezes mais).
A história gira em torno de sexo, mas não há nem sequer uma cena de maior sensualidade. Em "Flowers", a mesa substitui a cama, como se fosse a inevitável ante-sala social para o prazer individual. Cada sequência ancora-se em torno de comida e bebida.
É uma visão avançada e protofeminista que Hsiao-hsien apresenta em "Flowers". Situado na zona nobre da opulenta Xangai de 1884, reconstitui o ciclo de vida das prostitutas de luxo da época.
Compradas por uma bagatela ou simplesmente herdadas, as meninas de 8 ou 9 eram educadas para servir aos ricos fregueses. Se tinham sorte, ao crescerem trabalhavam muito até conquistar um grande cliente fixo.
As verdadeiras felizardas tinham seu contrato de trabalho comprado e tornavam-se esposas ou amantes bem instaladas. Algumas poucas poupavam o bastante para bancar a própria alforria.
"Flowers" rompe com o estereótipo de passividade e submissão da mulher oriental, em favor de uma visão mais complexa e equilibrada da guerra dos sexos.
O filme divide-se em três dramas básicos. No principal, um homem se vê dividido entre duas prostitutas. Ao casar-se com uma, compromete o bem-estar da outra.
A segunda história acompanha a batalha de uma prostituta pela obtenção de sua independência, pela compra do próprio "passe" junto à administradora do bordel.
Por fim, na terceira trama, uma bela e jovem cortesã busca desesperadamente o casamento, não se contentando com um papel secundário na relação.
Hsiao-hsien faz um cinema exigente. Quando erra na trama, como no anterior "Good Men, Good Women" (1996), impõe-se a monotonia. "Flowers" não é um filme fácil, mas propicia um mergulho de rara complexidade na misteriosa China do final do século passado.
O "Dogma-95" (leia trechos abaixo), de Lars Von Trier, divulgado no festival, tem vários alvos, mas é em essência um manifesto contra Hollywood e contra o chamado "cinema de autor".
Sem estardalhaço, Hou Hsiao-hsien apontou ontem a verdadeira alternativa para o primeiro e a força do segundo.
Martin Scorsese, na presidência do júri, disse em entrevista: "Fui cativado pela utilização do ritmo pelo cinema de Taiwan, especialmente por Hou Hsiao-hsien". É somar dois e dois.



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