São Paulo, quinta, 21 de maio de 1998

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A razão tranquilizadora de FHC

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Não pertenço a partido político, nunca ocupei cargo público e não sou candidato a nada. Confesso que, no fundo, o fenômeno político me interessa mais como um laboratório das crenças e paixões humanas do que qualquer outra coisa. Procuro, dentro dos meus limites, manter-me a par dos acontecimentos e analisar com o máximo de frieza e isenção os embates naturais entre os que estão no governo e os que fazem oposição a ele.
Foi com esse espírito que me dediquei, nos últimos dias, à leitura do recém-publicado "O "Presidente Segundo o Sociólogo" (Companhia das Letras). O livro é o fruto de um formidável trabalho de entrevista e edição de texto realizado pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo. Da maratona de encontros com o presidente -20 horas de conversa gravadaS- resultou um volume de quase 400 páginas que pode ser visto, sem muito exagero, como uma espécie de "Enciclopédia Fernando Henrique Cardoso".
A diversidade dos temas tratados e a desenvoltura de FHC ao discorrer sobre eles é de tirar o fôlego. Da deterioração dos centros urbanos à lógica da globalização, passando por suas idéias sobre mudança social, o papel da mídia e o preconceito racial no Brasil, não há assunto que escape da prosa cordial, matizada e aveludada do nosso presidente-sociólogo. "Você pode me perguntar sobre n ítens", ele avisa. "Eu terei sempre uma resposta."
A boca e a palavra, notava Maquiavel, são o arco e a flecha do político (ou, como dizia Ulysses Guimarães, na desastrada fórmula evocada por FHC no livro, "o instrumento de trabalho do político é o cuspe, a saliva"). Que FHC seja um virtuose consumado na arte da argumentação persuasiva e no uso habilidoso da conversa para envolver e cooptar os seus interlocutores, quem poderia discordar? Das n mais uma respostas que ele oferece no livro, entretanto, nem todas me pareceram igualmente convincentes.
Entre os melhores momentos da entrevista -aqueles em que tive a nítida sensação de que algo de mais consistência e conteúdo estava sendo transmitido- dois claramente se destacam.
O primeiro é o relato detalhado da montagem do Plano Real. A conquista da estabilidade monetária é, sem dúvida, o grande divisor de águas na história recente do país. O papel crucial de FHC como líder e aglutinador na formação da equipe que desenhou e implementou o plano, convencendo pessoalmente cada um dos membros a embarcar num projeto que ninguém sabia ao certo, muito menos ele, o que poderia ser, aparece com clareza e riqueza de detalhes no depoimento do presidente:
"Ninguém queria. Ninguém acreditava que fosse possível acabar com a inflação num governo de transição e com o Congresso em pandarecos por causa do escândalo da Comissão do Orçamento. Só eu achava que dava." Mesmo sem o aval do FMI, FHC foi em frente. Administrou Itamar com maestria e soube posicionar-se a tempo de virar o quadro sucessório. Acreditou e deu certo. Não foi só a economia: o Plano Real virou o jogo e deslocou de forma permanente não um ou outro segmento, mas todo o espectro da política brasileira.
O segundo ponto alto da entrevista, a meu ver, é a análise da política externa que vem sendo implementada pelo governo FHC. Confesso que me surpreendi com a sofisticação, a maturidade e a consistência da estratégia brasileira visando não só consolidar o Mercosul, mas transformá-lo no pólo a partir do qual se dê a integração sul-americana (Chile, Bolívia e Venezuela) e, mais à frente, numa negociação bloco a bloco, a união das Américas.
O que mais me chamou a atenção nesse processo foi a relevância e a complementaridade dos projetos de integração da matriz energética sul-americana (gás, petróleo, carvão e eletricidade), por meio dos quais o Brasil vai dando realidade prática à cooperação com os países vizinhos e assumindo, sem arrogância, a sua natural vocação de liderança no continente. Os exemplos concretos se multiplicam e justificam a fala de FHC: "Há um projeto e ele compreende a integração física da América do Sul".
Isto posto -e antes que alguém me acuse de apologético, tucano enrustido ou coisa pior-, deixe-me agora "virar casaca" e falar um pouco (o espaço é curto) daqueles que me pareceram ser, por diferentes razões, os piores momentos da entrevista.
Para começar, um rápido aperitivo lógico. FHC insiste, mais uma vez, em declarar: "Sou mais inteligente do que vaidoso". Um lógico malicioso poderia propor o "paradoxo de FHC". Quem diz tal coisa está, primeiro, afirmando o que nega: a enorme vaidade de se considerar mais inteligente do que vaidoso. Mas não é só. A sentença também nega o que afirma: há uma falta de inteligência manifesta na tentativa de se ocultar a própria vaidade desse modo, ou seja, revelando-a.
Outras passagens que me chamaram a atenção, no mal sentido, foram: a desconversa diante da pressão para que explicasse, afinal, porque o Brasil demora tanto para virar desenvolvido (p. 17); a insustentável alegação de que o principal problema do Brasil "não é aqui", mas lá fora, na "questão dos capitais selvagens" (p. 88); a tese absurda de que o neoliberalismo "prega a não-regra" (p. 95); e a inconsistência explícita de afirmar que a universidade não deve ser paga, mas a gratuidade para os ricos é injusta e "por isso cheguei a propor que o pagamento fosse feito pelo imposto de renda" (p. 314).
Os exemplos abundam. Tudo isso, porém, são questões secundárias diante do problema mais grave que é o tom de aceitação complacente e autocongratulação que permeia o livro -a total falta de sentido de urgência no tratamento das questões sociais e no encaminhamento das reformas para cuja realização, afinal, FHC foi eleito.
Por mais boa vontade que se tenha e por mais que me esforce em aceitar de boa fé os repetidos apelos de que é preciso paciência com o ritmo das mudanças nos marcos da democracia, a entrevista reforçou em mim a impressão de que o governo FHC vem padecendo de falta de firmeza e determinação.
A razão tranquilizadora do sociólogo parece deixar o presidente resignado a um segundo mandato na base da meia coragem das meias soluções, buscando resolver as nossas urgências com mais adiamento e endividamento. Pelo andar da carruagem, um terceiro mandato ainda seria pouco.
O fato, porém, é que o caminho em que estamos é preocupante, o ritmo das reformas, exasperante e o cenário, a médio prazo, nebuloso. O primeiro mandato de FHC foi, em larga medida, um exercício na arte de ganhar tempo (emenda da reeleição e privatização incluídos). A grande questão é saber por quanto tempo ainda será possível continuarmos ganhando (e comprando) tempo. "Prazos largos", alerta Machado de Assis, "são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos".




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