São Paulo, quinta, 21 de maio de 1998

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LIVRO
Shusterman insere cultura pop na academia

Ennio Brauns/Folha Imagem
O filósofo americano Richard Shusterman, após debate no Tuca


PATRICIA DECIA
da Reportagem Local

O filósofo americano leva a cultura pop à academia. Em "Vivendo a Arte - O Pensamento Pragmatista e a Estética Popular", que a editora 34 lança no Brasil, Richard Shusterman analisa em bases, conceitos e linguagem filosóficas uma poesia de T.S. Eliot e uma letra de rap do Stetsasonic.
Os dois textos funcionam como exemplos aplicados de sua filosofia pragmatista, que rejeita o monopólio da alta cultura como único gênero digno de atenção estética legítima.
Shusterman nasceu nos EUA, tem cidadania israelense, graduou-se em Jerusalém, fez doutorado em Oxford e ensina filosofia na Universidade da Filadélfia.
Veio ao Brasil para lançar o livro, participar de debates no Rio e em São Paulo e já pensa em incluir o país num projeto que desenvolve para a Unesco, batizado de Music (Music, Urbanism, Social Integration and Culture). Na noite de anteontem, ele participou de debate no Tuca, em São Paulo, dividindo a mesa com os rappers e professores (leia texto abaixo). Antes, concedeu entrevista à Folha.

Folha - Por que estudar o rap?
Richard Shusterman -
Uma das razões é biográfica. Passei muito tempo fora dos Estados Unidos. Quando voltei, a idéia de pensar o pragmatismo, que é uma corrente norte-americana, e a cultura popular do país ajudou a minha reintegração e reassimilação de volta àquela cultura.
Folha - Seu livro tenta legitimar a cultura popular como objeto de estudo da filosofia. Por que teve de começar desse ponto?
Shusterman -
Tento fazer a ponte entre duas culturas. Sou um professor universitário, um filósofo profissional, e o livro é estruturado de maneira a ligar a tradição filosófica e estética a formas de cultura novas e populares, que nunca receberam o selo de cultura legítima. Para muitas pessoas, isso não importa, essa necessidade não existe. Por outro lado, nos departamentos de filosofia, há uma tendência de não levar a cultura popular muito a sério e isso tornou-se um problema educacional.
Folha - De que maneira?
Shusterman -
Há muitos estudantes que se interessariam em estudar e trabalhar com essa cultura, mas sentem que ela não é séria ou importante o suficiente. Então, devotam sua energia intelectual a outras coisas e ficam divididos. A cultura popular nunca teve uma análise filosófica, e há muitos argumentos fortes na história da filosofia sobre os motivos pelos quais ela nunca poderá ser boa e inteligente, enfim, arte. O livro quer misturar todas essas coisas.
Folha - Essa mistura significa que a filosofia vai se apropriar da cultura popular para mudá-la?
Shusterman -
Antes de tudo, a cultura popular está sempre mudando. Acho que a filosofia deve estar envolvida, não para ditar leis, mas como o estudo do mundo em que vivemos. E a cultura popular é uma parte importante desse mundo. Não é bom para a filosofia não olhar para isso. A análise dos produtos da cultura popular pode ajudar a melhorar essa cultura. Essa é minha posição, que eu chamo no livro de meliorismo.
Folha - O que isso significa?
Shusterman -
Não estou tentando dizer que todo a produção popular é boa. Mas há coisas boas e com muito potencial necessário nas sociedades democráticas. Então, a filosofia e a crítica devem trabalhar juntas para ter certeza de que a cultura continue a melhorar. A tendência atual é que, uma vez que você decide que a cultura popular não precisa ser examinada sob os critérios estéticos e artísticos, a única maneira pela qual você mede o sucesso é quanto dinheiro ela produz. Essa não é uma boa fórmula.
Eu não fico apenas nos argumentos de justificação. Há um capítulo inteiro no livro sobre rap que é minha visão de que fazer filosofia não é ficar apenas no campo da argumentação abstrata, mas ajudar as pessoas a apreciarem melhor esses trabalhos de arte misturando a crítica prática com com teoria estética.
Folha - O sr. aponta no livro conexões entre a alta cultura e a cultura popular. Poderia explicar?
Shusterman -
O pragmatismo olha para as coisas historicamente. Shakespeare, por exemplo, começou como cultura popular. As tragédias gregas, que são os maiores clássicos, começaram como cultura popular e eram criticadas pelos intelectuais de seu tempo. Sempre houve uma conexão. A divisão foi feita por uma certa cultura intelectual. O propósito do meu trabalho é mostrar que as diferenças são mais arbitrárias e impostas, contextuais e sociais, do que estéticas.
Folha - O que caracteriza uma boa obra de arte?
Shusterman -
Entre os critérios, eu diria um certo grau de unidade ou coerência, uma certa quantidade de riqueza, multiplicidade, uma certa quantidade de criatividade e inteligência, ter algo a dizer sobre o mundo da experiência humana e algum tipo de relação significativa com a vida das pessoas e a tradição artística. Esses são critérios gerais, mas é sempre bom ver como eles funcionam nos casos específicos.
Folha - Qual sua posição sobre as idéias da Escola de Frankfurt?
Shusterman -
Eles têm esse ideal de que, para um objeto de arte ser autêntico, tem de haver uma expressão autêntica e única do indivíduo, não limitada por formas fixas, como o tempo de um filme ou a duração de um programa de televisão. Eu não acho esses argumentos convincentes. Sonetos têm uma forma fixa, catedrais medievais não foram construídas por um único arquiteto com um conceito. Acho ingênua na Escola de Frankfurt a posição de que, para criticar o capitalismo, é preciso estar fora dele. Nada pode se sustentar fora do mundo. O universo tecnológico está em todo lugar. Por outro lado, acho que você deve lutar para manter o valor mesmo no processo comercial tecnológico
Folha - Como seu trabalho se relaciona com o de historiadores da cultura popular?
Shusterman -
Uma diferença entre a abordagem histórica e a pragmática é que minha filosofia é engajada, não apenas descritiva. O livro é mais do que um livro sobre música pop. Há um capítulo inteiro sobre a arte de viver e ver a ética não apenas como um modelo de estrita moralidade religiosa ou uma moralidade de mandamentos. Tento mostrar que os estilos de vida do final do século 20 não precisam ir em direção ao narcisismo, dandismo e esteticismo, que há a possibilidade de combinar ética e estética para que as pessoas possam viver melhor juntas.



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