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MARCELO COELHO
"Fantasia 2000" inverte o significado de seu antecessor
Se eu tivesse assistido à estréia de "Fantasia", em 1940,
provavelmente teria implicado
com o filme: que ousadia de Walt
Disney! Usar a sacrossanta música clássica em desenhos animados! Até Pauline Kael, crítica de
cinema sem nenhum preconceito
com relação a Hollywood, disse
que "Fantasia" era "grosseiramente kitsch".
Hoje, o filme é um clássico. Surge "Fantasia 2000". A comparação com o filme de 60 anos atrás é
inevitável. O episódio mais famoso do "Fantasia" original, com
Mickey no papel de aprendiz de
feiticeiro, foi incluído na produção hoje em cartaz. Li a crítica de
Sérgio Rizzo, no Guia da Folha,
apontando a superioridade do
velho Mickey diante das novas
elaborações computadorizadas
de "Fantasia 2000". Fui assistir o
filme.
O primeiro episódio visualiza,
com trovões e flores, um trecho da
"Quinta Sinfonia" de Beethoven.
O segundo desloca Respighi a um
cenário ártico, onde baleias atravessam mares frios e noites negras
com saltos curvos, de graça gorda,
carnal e pura, enquanto cristais
de gelo desabam dos icebergs.
Preparei-me para discordar de
Sérgio Rizzo. Aquilo era maravilhoso. Só que, depois, perto do final, Mickey emerge de 1940, com
seu "Aprendiz de Feiticeiro". Aí
percebi a diferença. Qual a diferença? Quais as semelhanças? Há
vários aspectos a comentar.
Antes de tudo, em "Aprendiz de
Feiticeiro" o encanto visual se deve ao tipo de cor utilizado nos filmes da década de 40. As cores
atuais são mais "duras", mais
realistas, mais objetivas. O mesmo acontece quando assistimos a
clássicos como "E o Vento Levou..." ou "Um Corpo Que Cai": o
azul é menos metálico, o amarelo
é mais oleoso, a sombra é mais
quente.
A historinha de Mickey se torna
melhor também por outra razão.
Há uma harmonia entre a figura
do camundongo -"desenhada"- e o fundo -"pintado"-
do porão do feiticeiro. Percebemos um cuidado pictórico, uma
espessura no ambiente; aliás, só
aqui, neste desenho, cabe o termo
"ambiente". Nos outros desenhos
de "Fantasia 2000" as coisas se
achatam mais, iluminadas de
modo igual. Perto dos outros, o
desenho de 1940 atinge as profundezas de um Rembrandt.
Talvez o grande problema dos
desenhos animados seja o da tridimensionalidade. Mesmo nos
clássicos de Disney, há um conflito entre o "linear" e o "tátil". Por
exemplo: uma superfície de água,
densa, turva, pesada, perfeitamente realista segundo as convenções da pintura, às vezes se
deixa corromper quando o desenhista da Disney se encarrega de
representar os círculos concêntricos feitos pelos pingos da chuva: o
"desenho" e o "risco" prevalecem.
Para não falar das bolhas de sabão: sempre mais planas, gráficas
e precisas do que a matéria de onde surgem.
Se "O Aprendiz de Feiticeiro"
conseguiu harmonizar o desenho
com a tridimensionalidade, destacando Mickey do ambiente do
qual ele queria se libertar, a tecnologia digital se confunde a esse
respeito.
Basta ver o episódio do soldadinho de chumbo na produção de
2000. A dançarina e o soldadinho
apresentam uma superfície estereoscópica, brilhante, convincente, de verniz e porcelana. Lembram, infelizmente, os bonecos de
"Toys", humanos demais, melodramáticos.
Há uma desumanização, uma
diminuição do estereográfico. O
episódio das baleias dançando ao
som de Respighi tenta isso. As baleias parecem fotografia; são reais
como é capaz de fazê-las um computador de máxima potência.
Contra essas baleias, há um fundo polar desenhado, em que mesmo os cristais de gelo não são tão
tridimensionais como seria possível.
Gostei muito. Mas o filme oscila
entre o puramente gráfico (o episódio da "Rhapsody in Blue") e o
pesadamente tátil ("O Soldadinho de Chumbo").
Há, entretanto, semelhanças
entre o desenho de 1940 e os
atuais. A primeira se refere ao
trato da obsessão. O melhor de
Walt Disney está quando um motivo simples, repetido de forma
persecutória, abre-se ao ponto de
transformar-se numa fantasia
(este é bem o termo) coletiva.
As repetições da música de Paul
Dukas, no episódio de Mickey,
transformam-se em pesadelo
multitudinário; a insistência do
flamingo com o ioiô faz Saint-Saens mais humorístico do que
nunca no filme atual; multidões
de bichos esmagam Donald na
história da Arca de Noé. Subitamente, cardumes de baleias enegrecem a tela; o mesmo acontece
com as borboletas de papel dobrado que vencem os relâmpagos
da "Quinta Sinfonia".
Há nessas passagens do filme
um elogio do coletivo, do "total",
que contrasta com a dramaturgia
anedótica do filhote de baleia
procurando os pais, de Donald
procurando Margarida, do soldadinho de chumbo etc.
"Fantasia 2000" reflete, sem saber, o contraste que existe entre o
poder da música, dionisíaco, grupal -que felicidade ver tantos bichos numa Arca de Noé imensa,
reverberando de ecos inaudíveis
para nós- e a perfeição técnica,
apolínea e recortada do desenho.
Em 1940, Walt Disney fazia do
dionisíaco, do grupal, um pesadelo: é o "Aprendiz de Feiticeiro",
fantasia do nazismo. "Fantasia
2000" tem menos medo da música. Entrega-se a um monte de baleias, entrega-se às mais cabeludas utopias ecológicas do trecho
relativo ao "Pássaro de Fogo", sabendo-se atual. Aceita a comparação com o filme de 1940, porque
imita a grupalidade que havia
então, invertendo o sinal que tinha.
O que era totalitarismo se
transforma em coletividade, em
comunidade ecológica. O que era
jogo entre figura e fundo se torna
conflito entre duas e três dimensões.
O conflito exige resolução. Pois
a harmonia que vemos no episódio de Mickey era falsa: refere-se
a um momento em que alistar-se
no exército correspondia a lutar
pela liberdade do indivíduo. Em
que obedecer à ordem significava
(falsamente) ser feliz.
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