São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2000


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MARCELO COELHO

"Fantasia 2000" inverte o significado de seu antecessor

Se eu tivesse assistido à estréia de "Fantasia", em 1940, provavelmente teria implicado com o filme: que ousadia de Walt Disney! Usar a sacrossanta música clássica em desenhos animados! Até Pauline Kael, crítica de cinema sem nenhum preconceito com relação a Hollywood, disse que "Fantasia" era "grosseiramente kitsch".
Hoje, o filme é um clássico. Surge "Fantasia 2000". A comparação com o filme de 60 anos atrás é inevitável. O episódio mais famoso do "Fantasia" original, com Mickey no papel de aprendiz de feiticeiro, foi incluído na produção hoje em cartaz. Li a crítica de Sérgio Rizzo, no Guia da Folha, apontando a superioridade do velho Mickey diante das novas elaborações computadorizadas de "Fantasia 2000". Fui assistir o filme.
O primeiro episódio visualiza, com trovões e flores, um trecho da "Quinta Sinfonia" de Beethoven. O segundo desloca Respighi a um cenário ártico, onde baleias atravessam mares frios e noites negras com saltos curvos, de graça gorda, carnal e pura, enquanto cristais de gelo desabam dos icebergs.
Preparei-me para discordar de Sérgio Rizzo. Aquilo era maravilhoso. Só que, depois, perto do final, Mickey emerge de 1940, com seu "Aprendiz de Feiticeiro". Aí percebi a diferença. Qual a diferença? Quais as semelhanças? Há vários aspectos a comentar.
Antes de tudo, em "Aprendiz de Feiticeiro" o encanto visual se deve ao tipo de cor utilizado nos filmes da década de 40. As cores atuais são mais "duras", mais realistas, mais objetivas. O mesmo acontece quando assistimos a clássicos como "E o Vento Levou..." ou "Um Corpo Que Cai": o azul é menos metálico, o amarelo é mais oleoso, a sombra é mais quente.
A historinha de Mickey se torna melhor também por outra razão. Há uma harmonia entre a figura do camundongo -"desenhada"- e o fundo -"pintado"- do porão do feiticeiro. Percebemos um cuidado pictórico, uma espessura no ambiente; aliás, só aqui, neste desenho, cabe o termo "ambiente". Nos outros desenhos de "Fantasia 2000" as coisas se achatam mais, iluminadas de modo igual. Perto dos outros, o desenho de 1940 atinge as profundezas de um Rembrandt.
Talvez o grande problema dos desenhos animados seja o da tridimensionalidade. Mesmo nos clássicos de Disney, há um conflito entre o "linear" e o "tátil". Por exemplo: uma superfície de água, densa, turva, pesada, perfeitamente realista segundo as convenções da pintura, às vezes se deixa corromper quando o desenhista da Disney se encarrega de representar os círculos concêntricos feitos pelos pingos da chuva: o "desenho" e o "risco" prevalecem. Para não falar das bolhas de sabão: sempre mais planas, gráficas e precisas do que a matéria de onde surgem.
Se "O Aprendiz de Feiticeiro" conseguiu harmonizar o desenho com a tridimensionalidade, destacando Mickey do ambiente do qual ele queria se libertar, a tecnologia digital se confunde a esse respeito.
Basta ver o episódio do soldadinho de chumbo na produção de 2000. A dançarina e o soldadinho apresentam uma superfície estereoscópica, brilhante, convincente, de verniz e porcelana. Lembram, infelizmente, os bonecos de "Toys", humanos demais, melodramáticos.
Há uma desumanização, uma diminuição do estereográfico. O episódio das baleias dançando ao som de Respighi tenta isso. As baleias parecem fotografia; são reais como é capaz de fazê-las um computador de máxima potência. Contra essas baleias, há um fundo polar desenhado, em que mesmo os cristais de gelo não são tão tridimensionais como seria possível.
Gostei muito. Mas o filme oscila entre o puramente gráfico (o episódio da "Rhapsody in Blue") e o pesadamente tátil ("O Soldadinho de Chumbo").
Há, entretanto, semelhanças entre o desenho de 1940 e os atuais. A primeira se refere ao trato da obsessão. O melhor de Walt Disney está quando um motivo simples, repetido de forma persecutória, abre-se ao ponto de transformar-se numa fantasia (este é bem o termo) coletiva.
As repetições da música de Paul Dukas, no episódio de Mickey, transformam-se em pesadelo multitudinário; a insistência do flamingo com o ioiô faz Saint-Saens mais humorístico do que nunca no filme atual; multidões de bichos esmagam Donald na história da Arca de Noé. Subitamente, cardumes de baleias enegrecem a tela; o mesmo acontece com as borboletas de papel dobrado que vencem os relâmpagos da "Quinta Sinfonia".
Há nessas passagens do filme um elogio do coletivo, do "total", que contrasta com a dramaturgia anedótica do filhote de baleia procurando os pais, de Donald procurando Margarida, do soldadinho de chumbo etc.
"Fantasia 2000" reflete, sem saber, o contraste que existe entre o poder da música, dionisíaco, grupal -que felicidade ver tantos bichos numa Arca de Noé imensa, reverberando de ecos inaudíveis para nós- e a perfeição técnica, apolínea e recortada do desenho.
Em 1940, Walt Disney fazia do dionisíaco, do grupal, um pesadelo: é o "Aprendiz de Feiticeiro", fantasia do nazismo. "Fantasia 2000" tem menos medo da música. Entrega-se a um monte de baleias, entrega-se às mais cabeludas utopias ecológicas do trecho relativo ao "Pássaro de Fogo", sabendo-se atual. Aceita a comparação com o filme de 1940, porque imita a grupalidade que havia então, invertendo o sinal que tinha.
O que era totalitarismo se transforma em coletividade, em comunidade ecológica. O que era jogo entre figura e fundo se torna conflito entre duas e três dimensões.
O conflito exige resolução. Pois a harmonia que vemos no episódio de Mickey era falsa: refere-se a um momento em que alistar-se no exército correspondia a lutar pela liberdade do indivíduo. Em que obedecer à ordem significava (falsamente) ser feliz.


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