São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 2002

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CINEMA/"UM SOL ALARANJADO"

Eduardo Valente vira o jogo da fragilidade nacional

INÁCIO ARAUJO

CRÍTICO DA FOLHA

"Um Sol Alaranjado", exibido em sessão especial pelo Cinesesc na última segunda e participante do Cine Ceará (de hoje a 27 de junho), é um filme feito em preto-e-branco, com poucos recursos, como complemento de curso da Universidade Federal Fluminense. Sua exibição toma apenas 17 minutos; ainda assim convém não subestimá-la.
O essencial no caso não são os parcos recursos, a duração nem mesmo o fato de ter ganho em Cannes o prêmio da mostra Cinéfondation, dedicada a filmes de escola, e sim que, à sua visão, percebemos logo na primeira tomada que algo diferente acontece.
Nessa primeira tomada, como em muitos outros curtas (e longas também), uma mulher desperta. Poucas coisas são mais difíceis de filmar do que alguém despertando. Quase sempre sentimos o ator que finge despertar. Em "Um Sol Alaranjado" também.
Normalmente, o despertar é seguido de gestos razoavelmente rápidos, com os quais o cineasta busca ganhar tempo e não aborrecer o espectador. É aqui que Eduardo Valente, autor do filme, vira o jogo. Em vez de apressar o ritmo, de suprimir esses tempos mortos e morosos do despertar, detém-se sobre eles, como que analisando cada gesto.
Desde então, sabemos estar diante de um realizador consistente -e esse sentimento prosseguirá durante toda a projeção do filme, em que a história diz respeito aos cuidados desvelados que uma filha (ou neta?) dedica a seu pai (ou avô?).
Não há no rosto ou nas atitudes da moça nenhuma impaciência em relação ao velho senhor. Da parte dele não se nota conformismo ou revolta. Estamos diante de um filme que não tem nada a dizer, só a mostrar. E mostra.
Se acho importante chamar a atenção para "Um Sol Alaranjado", não é porque a imensa maioria dos curtas-metragens feitos nos últimos tempos me irritem profundamente, com sua busca do brilhareco, a produção de aspirações hollywoodianas, o aparato fotográfico intimidatório. Mas porque essas características reproduzem, no geral, o que temos visto na imensa maioria dos longas brasileiros lançados nos últimos anos, em que a assimilação do cinema pelos realizadores é quase sempre superficial e os resultados tendem com frequência assustadora ao decorativo.
Ora, o filme de Eduardo Valente pode ser -espera-se que seja- o início de uma virada de jogo comandada pelo grupo da revista eletrônica "Contracampo". São os cinéfilos mais apaixonados, mais consequentes, mais críticos que temos hoje no Brasil. Não apenas vêem filmes: fuçam, pesquisam, reavaliam.
É preciso dizer que estamos em época bem diferente dos anos 60, por exemplo. Naquele tempo, o vento soprava a favor, existia o cinema novo. Havia algo a que um novato se referir, mesmo que fosse para discordar.
Hoje, não. Parte-se do nada ou quase isso, de discussões aborrecidas sobre indústria e mercado, de operações maciças de marketing que garantem o lançamento dos filmes (e seu imediato esquecimento). Em suma, de uma cinematografia emasculada, onde a última coisa que se faz é ver, refletir e amar cinema.
"Um Sol Alaranjado" abre caminho para uma nova geração disposta a negar com toda força e com todas as idéias, as iniquidades do cinema brasileiro contemporâneo. Retiremos a palavra "iniquidade", muito forte. Será mais justo substituí-la por "fragilidade", na medida em que a última década contém muito do espanto e do esforço de uma cinematografia incipiente, colocada diante de desafios tais como conquistar um público novo (o de classe média), chegar a novos cinemas (os de shopping, os multiplex), comprovar sua qualidade técnica (ah, o fetiche da técnica!) e, de passagem, ter idéias.
O que ele anuncia é o surgimento de um núcleo duro de jovens realizadores que conhecem muito bem a importância do mercado, mas sabem que isso não serve de nada quando os filmes não dialogam com a produção mundial, ignoram o passado de sua arte e não projetam nada para o futuro. Tudo isso está presente no filme de Eduardo Valente. Que venham outros.



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