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CINEMA/"UM SOL ALARANJADO"
Eduardo Valente vira o jogo da fragilidade nacional
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Um Sol Alaranjado", exibido em sessão especial
pelo Cinesesc na última segunda e
participante do Cine Ceará (de
hoje a 27 de junho), é um filme feito em preto-e-branco, com poucos recursos, como complemento
de curso da Universidade Federal
Fluminense. Sua exibição toma
apenas 17 minutos; ainda assim
convém não subestimá-la.
O essencial no caso não são os
parcos recursos, a duração nem
mesmo o fato de ter ganho em
Cannes o prêmio da mostra Cinéfondation, dedicada a filmes de
escola, e sim que, à sua visão, percebemos logo na primeira tomada que algo diferente acontece.
Nessa primeira tomada, como
em muitos outros curtas (e longas
também), uma mulher desperta.
Poucas coisas são mais difíceis de
filmar do que alguém despertando. Quase sempre sentimos o ator
que finge despertar. Em "Um Sol
Alaranjado" também.
Normalmente, o despertar é seguido de gestos razoavelmente rápidos, com os quais o cineasta
busca ganhar tempo e não aborrecer o espectador. É aqui que
Eduardo Valente, autor do filme,
vira o jogo. Em vez de apressar o
ritmo, de suprimir esses tempos
mortos e morosos do despertar,
detém-se sobre eles, como que
analisando cada gesto.
Desde então, sabemos estar
diante de um realizador consistente -e esse sentimento prosseguirá durante toda a projeção do
filme, em que a história diz respeito aos cuidados desvelados que
uma filha (ou neta?) dedica a seu
pai (ou avô?).
Não há no rosto ou nas atitudes
da moça nenhuma impaciência
em relação ao velho senhor. Da
parte dele não se nota conformismo ou revolta. Estamos diante de
um filme que não tem nada a dizer, só a mostrar. E mostra.
Se acho importante chamar a
atenção para "Um Sol Alaranjado", não é porque a imensa maioria dos curtas-metragens feitos
nos últimos tempos me irritem
profundamente, com sua busca
do brilhareco, a produção de aspirações hollywoodianas, o aparato
fotográfico intimidatório. Mas
porque essas características reproduzem, no geral, o que temos
visto na imensa maioria dos longas brasileiros lançados nos últimos anos, em que a assimilação
do cinema pelos realizadores é
quase sempre superficial e os resultados tendem com frequência
assustadora ao decorativo.
Ora, o filme de Eduardo Valente
pode ser -espera-se que seja- o
início de uma virada de jogo comandada pelo grupo da revista
eletrônica "Contracampo". São os
cinéfilos mais apaixonados, mais
consequentes, mais críticos que
temos hoje no Brasil. Não apenas
vêem filmes: fuçam, pesquisam,
reavaliam.
É preciso dizer que estamos em
época bem diferente dos anos 60,
por exemplo. Naquele tempo, o
vento soprava a favor, existia o cinema novo. Havia algo a que um
novato se referir, mesmo que fosse para discordar.
Hoje, não. Parte-se do nada ou
quase isso, de discussões aborrecidas sobre indústria e mercado,
de operações maciças de marketing que garantem o lançamento
dos filmes (e seu imediato esquecimento). Em suma, de uma cinematografia emasculada, onde a
última coisa que se faz é ver, refletir e amar cinema.
"Um Sol Alaranjado" abre caminho para uma nova geração
disposta a negar com toda força e
com todas as idéias, as iniquidades do cinema brasileiro contemporâneo. Retiremos a palavra
"iniquidade", muito forte. Será
mais justo substituí-la por "fragilidade", na medida em que a última década contém muito do espanto e do esforço de uma cinematografia incipiente, colocada
diante de desafios tais como conquistar um público novo (o de
classe média), chegar a novos cinemas (os de shopping, os multiplex), comprovar sua qualidade
técnica (ah, o fetiche da técnica!)
e, de passagem, ter idéias.
O que ele anuncia é o surgimento de um núcleo duro de jovens
realizadores que conhecem muito
bem a importância do mercado,
mas sabem que isso não serve de
nada quando os filmes não dialogam com a produção mundial, ignoram o passado de sua arte e não
projetam nada para o futuro. Tudo isso está presente no filme de
Eduardo Valente. Que venham
outros.
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