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CARLOS HEITOR CONY
Os grandes sonhos de Sérgio Bernardes
Só agora , sabendo da morte de Sérgio Bernardes, na semana passada, tive a certeza de que ele nunca existiu. Tomei conhecimento de sua não-existência por vias transversas, era garoto, atravessava a rua 7 de Setembro, aqui no Rio, e vi um homem elegantíssimo, de terno muito bem cortado, cabelos brancos e
bastos, caminhando como se jovem fosse.
Alguém me apontou: "Ali vai o Vladimir Bernardes, o maior jornalista do Brasil. Tem um filho que é um gênio".
Confesso que não fiquei impressionado nem com o maior jornalista do Brasil nem com o filho dele que seria um gênio. Mas, a partir daquela época, comecei a ouvir falar de Sérgio Bernardes, que
uns diziam louco e outros diziam
gênio -e ele foi as duas coisas
não de forma alternada, mas simultânea.
Uma tarde, estou no meu gabinete na revista ""Manchete", e me
entra um senhor grande, cara de
gozador, com uns canudos desses
em que os arquitetos enrolam
seus projetos em papel vegetal.
Nem se apresentou. Lera uma
crônica minha, achara-a maluca
e decidira me procurar para que,
juntos, fizéssemos outras maluquices. Só depois de algum tempo
identifiquei no visitante o arquiteto Sérgio Bernardes.
Foram semanas de estudos e
desvarios. Ele me levou a seu estúdio, na Barra da Tijuca, na bonita casa que construíra diante do
mar. Ali estavam as maquetes de
seus projetos mais mirabolantes,
a divisão do nosso território em
sete regiões-ilhas formadas pelos
grandes rios nacionais. Seríamos
uma Veneza gigantesca, cortada
de água por todos os lados, sem
necessidade de megaestradas, gigantescos caminhões poluidores,
manutenção cara e problemática.
Ainda com o pensamento em
Veneza, Sérgio bolou um sistema
de transporte pela orla do Rio, o
sujeito iria do Leblon à praça 15
por mar, parando em estações intermediárias, exatamente como
em Veneza. Haveria linhas diretas e de longo curso, que iriam ao
Galeão, a Paquetá, a Niterói. Mas
o deslocamento miúdo da zona
sul, que hoje entope todas as ruas,
seria feito por confortáveis lanchas que pegariam o sujeito na
Garcia Dávila e o deixariam no
Flamengo. Um ovo de Colombo!
Por falar em ovo, Sérgio me
mostrou o que ele chamava exatamente de ""Grande Ovo". Um
imenso, um formidável ovo de
cristal, com vários andares, escadas rolantes, fontes, lojas, cinemas, bancos e um auditório surrealista para 5.000 pessoas, em
que ele instalaria o Parlamento
do Terceiro Milênio.
Argumentei que não existia nenhum Parlamento do Terceiro
Milênio, ainda estávamos longe
dele, mas Sérgio me explicou:
"Evidente, não há o Parlamento
porque não fizeram o meu projeto. Mas, quando ele for feito, haverá um parlamento para representantes do terceiro milênio discutirem os problemas. E diante de
uma abóbada de cristal duas vezes maior do que o Maracanã,
vendo os peixes, as arraias, a flora
marinha em seu esplendor. Garanto que o terceiro milênio será
maravilhoso".
E, para melhor me convencer,
mostrou-me os projetos já detalhados e orçados. Um imenso túnel, também de cristal, levaria a
enorme bolha para dentro do
oceano, a 10 km do litoral. Um eficientíssimo sistema de metrôs e
navetas faria o acesso com rapidez, silêncio e baixo custo.
No imenso globo de cristal, funcionariam, além do Parlamento
do Terceiro Milênio ainda inexistente, um hospital de transplantes
de órgãos, um teatro para montagem das grandes óperas, do tipo
""Aída", ""Turandot", ""Tanhaüser" etc., quadras de tênis, de vôlei, de basquete e de futebol de salão, além de uma colossal concha
acústica, capaz de abrigar todos
os conjuntos de rock num único e
bastante festival.
Bem, como me competia, fui
aprovando tudo, achando tudo
maravilhoso. Até que perguntei se
o arquiteto já tinha algum cliente
interessado naquele formidável
projeto.
Com a mesma naturalidade
com que me mostrou seus desenhos e croquis, ele disse que tinha
estado com o prefeito de Arraial
do Cabo, município que acabara
de ganhar autonomia, separando-se de Cabo Frio. O prefeito
mostrara-se entusiasmado, aprovara tudo, só queria saber quanto
custariam aqueles metrôs, aqueles auditórios, a formidável bolha
de cristal submersa no Atlântico a
quilômetros do litoral e movida
por sofisticado sistema de refrigeração, ventilação e iluminação.
Sérgio respondeu: "Senhor prefeito, isso não vai lhe custar nada,
absolutamente nada. É um projeto que jamais será feito, por isso
terá custo zero".
Concordei em gênero e número
com ele. Os grandes, os mais importantes projetos que passeiam
pelo engenho do homem são baratíssimos porque nada custam e
nunca serão feitos. Acho que, naquela semana, homenageei dois
arquitetos amigos, comparando
Oscar Niemeyer com Pelé e Sérgio
Bernardes com Garrincha. Dois
homens extraordinários, que deixam para os outros a banalidade
de realizar o que sonham.
Quando é possível, como no caso de Niemeyer, que encontrou
um Juscelino, tudo bem. Quando
é mais difícil, como no caso de
Bernardes, ficou o escasso consolo
de me abraçar e de declarar que
eu o entendia.
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