São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Os grandes sonhos de Sérgio Bernardes

Só agora , sabendo da morte de Sérgio Bernardes, na semana passada, tive a certeza de que ele nunca existiu. Tomei conhecimento de sua não-existência por vias transversas, era garoto, atravessava a rua 7 de Setembro, aqui no Rio, e vi um homem elegantíssimo, de terno muito bem cortado, cabelos brancos e bastos, caminhando como se jovem fosse.
Alguém me apontou: "Ali vai o Vladimir Bernardes, o maior jornalista do Brasil. Tem um filho que é um gênio".
Confesso que não fiquei impressionado nem com o maior jornalista do Brasil nem com o filho dele que seria um gênio. Mas, a partir daquela época, comecei a ouvir falar de Sérgio Bernardes, que uns diziam louco e outros diziam gênio -e ele foi as duas coisas não de forma alternada, mas simultânea.
Uma tarde, estou no meu gabinete na revista ""Manchete", e me entra um senhor grande, cara de gozador, com uns canudos desses em que os arquitetos enrolam seus projetos em papel vegetal.
Nem se apresentou. Lera uma crônica minha, achara-a maluca e decidira me procurar para que, juntos, fizéssemos outras maluquices. Só depois de algum tempo identifiquei no visitante o arquiteto Sérgio Bernardes.
Foram semanas de estudos e desvarios. Ele me levou a seu estúdio, na Barra da Tijuca, na bonita casa que construíra diante do mar. Ali estavam as maquetes de seus projetos mais mirabolantes, a divisão do nosso território em sete regiões-ilhas formadas pelos grandes rios nacionais. Seríamos uma Veneza gigantesca, cortada de água por todos os lados, sem necessidade de megaestradas, gigantescos caminhões poluidores, manutenção cara e problemática.
Ainda com o pensamento em Veneza, Sérgio bolou um sistema de transporte pela orla do Rio, o sujeito iria do Leblon à praça 15 por mar, parando em estações intermediárias, exatamente como em Veneza. Haveria linhas diretas e de longo curso, que iriam ao Galeão, a Paquetá, a Niterói. Mas o deslocamento miúdo da zona sul, que hoje entope todas as ruas, seria feito por confortáveis lanchas que pegariam o sujeito na Garcia Dávila e o deixariam no Flamengo. Um ovo de Colombo!
Por falar em ovo, Sérgio me mostrou o que ele chamava exatamente de ""Grande Ovo". Um imenso, um formidável ovo de cristal, com vários andares, escadas rolantes, fontes, lojas, cinemas, bancos e um auditório surrealista para 5.000 pessoas, em que ele instalaria o Parlamento do Terceiro Milênio.
Argumentei que não existia nenhum Parlamento do Terceiro Milênio, ainda estávamos longe dele, mas Sérgio me explicou: "Evidente, não há o Parlamento porque não fizeram o meu projeto. Mas, quando ele for feito, haverá um parlamento para representantes do terceiro milênio discutirem os problemas. E diante de uma abóbada de cristal duas vezes maior do que o Maracanã, vendo os peixes, as arraias, a flora marinha em seu esplendor. Garanto que o terceiro milênio será maravilhoso".
E, para melhor me convencer, mostrou-me os projetos já detalhados e orçados. Um imenso túnel, também de cristal, levaria a enorme bolha para dentro do oceano, a 10 km do litoral. Um eficientíssimo sistema de metrôs e navetas faria o acesso com rapidez, silêncio e baixo custo.
No imenso globo de cristal, funcionariam, além do Parlamento do Terceiro Milênio ainda inexistente, um hospital de transplantes de órgãos, um teatro para montagem das grandes óperas, do tipo ""Aída", ""Turandot", ""Tanhaüser" etc., quadras de tênis, de vôlei, de basquete e de futebol de salão, além de uma colossal concha acústica, capaz de abrigar todos os conjuntos de rock num único e bastante festival.
Bem, como me competia, fui aprovando tudo, achando tudo maravilhoso. Até que perguntei se o arquiteto já tinha algum cliente interessado naquele formidável projeto.
Com a mesma naturalidade com que me mostrou seus desenhos e croquis, ele disse que tinha estado com o prefeito de Arraial do Cabo, município que acabara de ganhar autonomia, separando-se de Cabo Frio. O prefeito mostrara-se entusiasmado, aprovara tudo, só queria saber quanto custariam aqueles metrôs, aqueles auditórios, a formidável bolha de cristal submersa no Atlântico a quilômetros do litoral e movida por sofisticado sistema de refrigeração, ventilação e iluminação.
Sérgio respondeu: "Senhor prefeito, isso não vai lhe custar nada, absolutamente nada. É um projeto que jamais será feito, por isso terá custo zero".
Concordei em gênero e número com ele. Os grandes, os mais importantes projetos que passeiam pelo engenho do homem são baratíssimos porque nada custam e nunca serão feitos. Acho que, naquela semana, homenageei dois arquitetos amigos, comparando Oscar Niemeyer com Pelé e Sérgio Bernardes com Garrincha. Dois homens extraordinários, que deixam para os outros a banalidade de realizar o que sonham.
Quando é possível, como no caso de Niemeyer, que encontrou um Juscelino, tudo bem. Quando é mais difícil, como no caso de Bernardes, ficou o escasso consolo de me abraçar e de declarar que eu o entendia.



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