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LIVROS/LANÇAMENTOS
"A DÓCIL"
Novela de escritor russo ganha duas traduções diferentes no Brasil
Em Dostoiévski, erro humano se entrelaça à ausência de Deus
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
É preciso certa coragem para
se aproximar do universo de
Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
Há a famosa profusão dos nomes
russos e de seus diminutivos; a
trama cheia de nós que não desatam; uma impressão constante de
congestionamento espacial, de
asfixia, de superpopulação; sem
contar o próprio tamanho dos romances mais famosos -"Crime e
Castigo", "Os Irmãos Karamázov"...
Uma novela curta como "A Dócil" não tem por que intimidar
tanto o leitor. Exceto por uma razão, bem mais profunda do que as
citadas acima. O principal motivo
para o medo que Dostoiévski possa inspirar talvez esteja na seriedade, na gravidade com que encara a capacidade humana para o
erro, para o pecado, para o mal.
Quando lemos um romance como "Madame Bovary", de Flaubert, ou "Dom Casmurro", de
Machado de Assis, certamente
acompanhamos com bastante
consternação os deslizes e as misérias de seus protagonistas.
Mas, de alguma forma, Bentinho ou Emma Bovary
estão um pouco distantes de nós; o que
vemos são casos
exemplares, quase
que diagnósticos morais, delimitados
-magistralmente, é
claro- em si mesmos.
Essa distância chega a conferir
um caráter algo cômico a esses romances, se comparados aos de
Dostoiévski -em que as personagens se debatem com tentações
e misérias morais que reconhecemos de imediato como sendo
nossas. O que assusta é que não as
julgávamos, talvez, tão graves;
mas Dostoiévski apresenta todo
erro humano como sinal de danação, ou melhor, de uma radical
ausência de Deus.
Um breve diálogo, um curto raciocínio, um pouco de calculismo
nas relações já nos precipitam aos
caminhos da perdição mais irrespirável. Em "A Dócil" haveria material para um longo romance: o
narrador, de origem nobre, perde
sua patente militar num episódio
em que foi acusado de covardia.
Torna-se dono de uma casa de penhores. Uma jovem de 16 anos
-a "dócil" do título- está na
miséria. O narrador protege-a,
humilha-a, toma-a em casamento. E é só o começo de uma história de crueldade moral e de dependência psíquica sem limites.
O narrador conta tudo aos borbotões, algumas horas depois do
suicídio da mulher. O que aconteceu? Por que ela se matou? Em
poucas páginas, estamos confrontados com uma situação psicológica de extrema complexidade; impossível alcançar todos os
motivos da personagem. Seu ato,
como no caso de Cristo, é ao mesmo tempo sacrifício e acusação,
promessa regeneradora e expiação dos pecados de outrem.
O texto ganha corpo, e a voz do
narrador adquire uma presença
quase física, à medida que este se
corrige, se recrimina, se retorce
em busca de uma explicação para
o que ocorreu. Ele passa de algoz a
vítima com tamanha rapidez que
a chave do mistério parece ter-se
perdido no meio do caminho; de
qualquer modo, desconfiamos
dele. Ao mesmo tempo, acompanhamos seus pensamentos no
momento mesmo em que aparecem; essa técnica, a "hipótese de
um estenógrafo que anotaria tudo", diz Dostoiévski na introdução da novela, "é o que chamo de
fantástico nessa narrativa".
A tradução de Fátima Bianchi,
para a Cosac e Naify, é mais "literária". A de Vadim Nikitin, para a
34, pareceu-me mais clara e coloquial; no próprio excesso de notas
de rodapé, é como se reproduzisse a ansiedade do narrador. Comparem-se as traduções de um trecho bem do início do livro, onde
já podemos entrever, na jactância
do narrador ao conquistar a "dócil", o mal que se desencadeará.
"Eu, quer dizer, por mim, gosto
das orgulhosinhas. As orgulhosas
são particularmente belas quando... bem, quando já não se duvida do poder que se tem sobre elas,
hein? Ah, que homem baixo, canhestro!" (Vadim Nikitin). Na
tradução de Fátima Bianchi:
"Quanto a mim, digo, gosto das
orgulhosinhas. As orgulhosas são
particularmente boas quando...
bem, quando já não se duvida do
próprio poder sobre elas, não é?
Oh, que sujeito inconveniente, infame!".
A edição da Cosac tem ilustrações de Lasar Segall, e comentário
primoroso de Augusto Massi. A
da 34 traz outra novela curta de
Dostoiévski, "O Sonho de um Homem Ridículo", um tanto abstrata e edificante, mas cujo primeiro
capítulo, opondo as forças da miséria e do suicídio, já nos lança ao
mundo terrível do autor. Vencido
o medo, sair dele não é fácil.
Duas Narrativas Fantásticas
- A Dócil e Sonho de
um Homem Ridículo
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Vadim Nikitin
Editora: 34
Quanto: R$ 23 (128 págs.)
Uma Criatura Dócil
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
Ilustrações: Lasar Segall
Editora: Cosac e Naify
Quanto: R$ 22 (93 págs.)
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