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São Paulo, sábado, 21 de junho de 2003

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WALTER SALLES

Novo cine argentino ganha cada vez mais fôlego

Primeiro foi como um sopro de ar fresco. Filmes como "Mundo Grúa", de Pablo Trapero, "La Ciénaga", de Lucrecia Martel, "Bolívia", de Adrian Caetano e "La Libertad", de Lisandro Alonso, tomaram de surpresa os mais importantes festivais internacionais. Ganharam dezenas de prêmios em eventos centrais como Cannes, Berlim ou Veneza -competindo com filmes de orçamentos muito maiores.
Depois veio uma segunda onda, em que esses jovens diretores ultrapassaram o fenômeno do filme-de-estréia e dialogaram com o público em obras densas, de grande maturidade e ressonância. É o caso de "El Bonaerense", de Trapero. Um filme de uma sensibilidade radical, que foi visto por mais de 300 mil espectadores no ano passado na Argentina e que foi lançado com sucesso em várias outras latitudes.
Um movimento como esse pode avançar movido pela sua capacidade de realimentação ou de implodir, como ocorreu com a talentosa quinta geração de cineastas chineses. Egressa do estúdio de Xian, a quinta geração revelou realizadores do calibre de Chen Kaige e Zhang Yimou, mas acabou sendo carcomida por problemas políticos ou pelo desaparecimento do espírito comunitário que havia dado liga ao grupo.
Tudo indica que, na Argentina, a implosão não vai acontecer tão cedo. Primeiro, pela força com que uma novíssima geração de cineastas se prepara para reforçar o caldo. Diretores como Pablo Reyero, cujo belo e crepuscular "La Cruz del Sur" estreou há pouco em Cannes.
Há mais gente chegando: a Argentina é hoje o país com o maior número de estudantes de cinema no mundo. Mais de 12 mil. Uma cifra surpreendente, muito mais importante do que nos EUA ou em qualquer país europeu. O centro desse movimento acadêmico é a FUC, Fundación Universidad del Cine. Trapero vem de lá, Daniel Burman e Bruno Stragnaro -parte do coletivo de "Pizza, Birra y Faso"- também. O espírito comunitário permanece vivo: muitos dos ex-alunos dão aulas hoje na FUC. A Fundación, por seu lado, ajuda a produzir os filmes dos seus antigos estudantes.
Essa "nova onda" também é alimentada pelo Instituto Nacional do Cine e do Audiovisual argentino, que se financia graças a uma taxa cobrada sobre os ingressos nas salas de cinema e sobre a venda de fitas de vídeo e DVD. E, toda a atenção é pouca, graças a algo que no Brasil nunca se teve a coragem de fazer: a taxação sobre a publicidade na tevê.
O apoio de fundos europeus como o Hubert Bals, ligado ao ótimo Festival de Roterdã, ou o Fond Sud francês tem ajudado. Mas tudo isso de nada valeria se os projetos que se concretizam hoje na Argentina não fossem tão promissores.
Para ter uma idéia do que vem por aí, relato aqui alguns dados de "Familia Rodante", o novo filme que Pablo Trapero começará a rodar em breve -quase ao mesmo tempo em que Lucrecia Martel dará início ao seu novo filme, "Niña Santa".
No início de "Familia Rodante", velhas imagens de super-oito mostram uma família nos anos 70. Imagens de arquivo dos anos de chumbo na Argentina se mesclam ao material de caráter familiar. A história e as histórias pessoais se interligam. Trinta anos mais tarde, a família se junta novamente para comemorar o aniversário da avó do grupo, Emília. É durante esse evento que Emília recebe o convite para ser madrinha de casamento de um parente numa Província distante.
Por motivos econômicos, toda a família parte em um único veículo, um velho Chevrolet de 1956, sobre o qual foi construída uma espécie de "motor home". Atravessam um país devastado pela crise social e pelo desemprego. Vão se transformando pouco a pouco com o que vêem. Ocorre o casamento. No final da festa, as imagens em super-oito são projetadas em um pano, o passado se misturando ao presente. Os personagens sabem que não são mais os mesmos. Na madrugada seguinte, partem novamente. Um capítulo se encerra, outro começa.
Algumas informações fundamentais para compreender a força atual do jovem cinema argentino: Emília, a avó da família, deverá ser encarnada pela avó de Pablo Trapero. A velha caminhonete com a casa acoplada foi construída pelo pai de Pablo, há 30 anos, sobre a base de um velho Chevrolet Viking. Aí está talvez o mais belo segredo do jovem cinema argentino: para muitos de seus realizadores, vida e cinema não se dissociam. Estão interligados, inexoravelmente.



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