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WALTER SALLES
Novo cine argentino ganha cada vez mais fôlego
Primeiro foi como um sopro de ar fresco. Filmes como
"Mundo Grúa", de Pablo Trapero, "La Ciénaga", de Lucrecia
Martel, "Bolívia", de Adrian Caetano e "La Libertad", de Lisandro
Alonso, tomaram de surpresa os
mais importantes festivais internacionais. Ganharam dezenas de
prêmios em eventos centrais como Cannes, Berlim ou Veneza
-competindo com filmes de orçamentos muito maiores.
Depois veio uma segunda onda,
em que esses jovens diretores ultrapassaram o fenômeno do filme-de-estréia e dialogaram com
o público em obras densas, de
grande maturidade e ressonância. É o caso de "El Bonaerense",
de Trapero. Um filme de uma
sensibilidade radical, que foi visto
por mais de 300 mil espectadores
no ano passado na Argentina e
que foi lançado com sucesso em
várias outras latitudes.
Um movimento como esse pode
avançar movido pela sua capacidade de realimentação ou de implodir, como ocorreu com a talentosa quinta geração de cineastas
chineses. Egressa do estúdio de
Xian, a quinta geração revelou
realizadores do calibre de Chen
Kaige e Zhang Yimou, mas acabou sendo carcomida por problemas políticos ou pelo desaparecimento do espírito comunitário
que havia dado liga ao grupo.
Tudo indica que, na Argentina,
a implosão não vai acontecer tão
cedo. Primeiro, pela força com
que uma novíssima geração de cineastas se prepara para reforçar o
caldo. Diretores como Pablo Reyero, cujo belo e crepuscular "La
Cruz del Sur" estreou há pouco
em Cannes.
Há mais gente chegando: a Argentina é hoje o país com o maior
número de estudantes de cinema
no mundo. Mais de 12 mil. Uma
cifra surpreendente, muito mais
importante do que nos EUA ou
em qualquer país europeu. O centro desse movimento acadêmico é
a FUC, Fundación Universidad
del Cine. Trapero vem de lá, Daniel Burman e Bruno Stragnaro
-parte do coletivo de "Pizza,
Birra y Faso"- também. O espírito comunitário permanece vivo:
muitos dos ex-alunos dão aulas
hoje na FUC. A Fundación, por
seu lado, ajuda a produzir os filmes dos seus antigos estudantes.
Essa "nova onda" também é
alimentada pelo Instituto Nacional do Cine e do Audiovisual argentino, que se financia graças a
uma taxa cobrada sobre os ingressos nas salas de cinema e sobre a venda de fitas de vídeo e
DVD. E, toda a atenção é pouca,
graças a algo que no Brasil nunca
se teve a coragem de fazer: a taxação sobre a publicidade na tevê.
O apoio de fundos europeus como o Hubert Bals, ligado ao ótimo Festival de Roterdã, ou o
Fond Sud francês tem ajudado.
Mas tudo isso de nada valeria se
os projetos que se concretizam hoje na Argentina não fossem tão
promissores.
Para ter uma idéia do que vem
por aí, relato aqui alguns dados
de "Familia Rodante", o novo filme que Pablo Trapero começará
a rodar em breve -quase ao
mesmo tempo em que Lucrecia
Martel dará início ao seu novo filme, "Niña Santa".
No início de "Familia Rodante", velhas imagens de super-oito
mostram uma família nos anos
70. Imagens de arquivo dos anos
de chumbo na Argentina se mesclam ao material de caráter familiar. A história e as histórias pessoais se interligam. Trinta anos
mais tarde, a família se junta novamente para comemorar o aniversário da avó do grupo, Emília.
É durante esse evento que Emília
recebe o convite para ser madrinha de casamento de um parente
numa Província distante.
Por motivos econômicos, toda a
família parte em um único veículo, um velho Chevrolet de 1956,
sobre o qual foi construída uma
espécie de "motor home". Atravessam um país devastado pela
crise social e pelo desemprego.
Vão se transformando pouco a
pouco com o que vêem. Ocorre o
casamento. No final da festa, as
imagens em super-oito são projetadas em um pano, o passado se
misturando ao presente. Os personagens sabem que não são mais
os mesmos. Na madrugada seguinte, partem novamente. Um
capítulo se encerra, outro começa.
Algumas informações fundamentais para compreender a força atual do jovem cinema argentino: Emília, a avó da família, deverá ser encarnada pela avó de
Pablo Trapero. A velha caminhonete com a casa acoplada foi
construída pelo pai de Pablo, há
30 anos, sobre a base de um velho
Chevrolet Viking. Aí está talvez o
mais belo segredo do jovem cinema argentino: para muitos de
seus realizadores, vida e cinema
não se dissociam. Estão interligados, inexoravelmente.
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