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São Paulo, sábado, 21 de junho de 2003

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Em ensaio, historiador francês revolve os mitos e as antigas origens do antiamericanismo

Rancores remotos

Associated Press
Milhares de manifestantes destroem bandeiras americanas em protesto contra os EUA em frente à Prefeitura de Seul, na Coréia do Sul


FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS

O recente conflito no Iraque provocou acalorados embates diplomáticos e midiáticos entre Washington e Paris, reavivando antigas animosidades e lugares-comuns sobre o antiamericanismo que existe na França.
Reticente às emoções fáceis, o professor francês (e editor da revista "Critique") Philippe Roger decidiu encarar o acalorado tema como objeto de estudo científico. Dedicou sete anos para escrever o minucioso ensaio "L'Ennemi Américain - Genéalogie de l'antiaméricanisme français" (O Inimigo Americano - Genealogia do antiamericanismo francês).
Na obra, ele procura desconstruir conceitos que se formaram pela força do tempo. Não, o antiamericanismo não é um mito, uma paixão ou uma ideologia, diz. Ele deve ser analisado na sua tradição como um discurso, um fenômeno não-conjuntural quase autônomo em relação à atualidade.
A origem do antiamericanismo data do século 18, pelas idéias do naturalista Georgs Buffon, que descreve os EUA como uma terra desafortunada, infértil e povoada de nativos débeis capazes de degenerar os imigrantes europeus.
Em seu apartamento em Paris, Philippe Roger recebeu a Folha.
 

Folha - Como ocorre o nascimento do antiamericanismo francês?
Philippe Roger -
É um prólogo bastante estranho, mas interessante de ser lembrado porque temos essa imagem da Europa, e sobretudo da França, numa espécie de comunhão democrática em torno das idéias do Iluminismo com os EUA. Sobretudo com os EUA da Independência.
Foi um episódio entusiasta, mas que durou alguns anos, enquadrado por essa visão negativa de um continente deserdado, uma terra pantanosa, pútrida, na qual todos os animais são menores do que no resto do mundo. Há um discurso de difamação dos EUA e que inquietou os "pais fundadores americanos", como Jefferson.

Folha - No final do século, a situação se torna ainda pior.
Roger -
A partir de 1792, as relações se degradam violentamente, porque os americanos ficaram atemorizados pela radicalização da Revolução Francesa. E Washington, que era amigo da França, decidiu não intervir nos "affaires" europeus quando a república francesa foi ameaçada pelos soberanos da Europa, sob o comando da Grã-Bretanha.
Esse primeiro ato de isolacionismo americano é encarado com amargura sobretudo quando, na França, acaba-se por saber que não só os americanos não queriam nos ajudar, mas ainda assinaram um tratado secreto com a Grã-Bretanha. Foi a gota d'água, e surge uma campanha antiamericana sob o tema da ingratidão.

Folha - O sr. coloca o surgimento de um antiamericanismo estético no início do século 19. Dois escritores se unem na crítica aos EUA, Stendhal e Baudelaire.
Roger -
Insisto nesses dois, particularmente, porque são bastante simbólicos: Stendhal, à esquerda, e Baudelaire, à direita. Os dois dizem praticamente a mesma coisa: trata-se de um país invivível, no qual não há cultura, não há beleza, obras de arte, monumentos.
Stendhal diz que não há ópera, portanto ele não poderia habitar os EUA. Baudelaire vai mais longe, descreve a americanização do mundo. Introduz a palavra americanização, que representaria um planeta uniforme, cinza, dominado pela técnica e a ditadura.
Baudelaire pensa que não podem existir liberdades democráticas num país no qual a tecnologia determina os comportamentos. Praticamente todos os intelectuais franceses vão dizer, nos anos 30, que se é menos livre nos EUA do que nos países totalitários da Europa. O que é bastante grave, quando se vê a progressão do fascismo, do nazismo e da URSS.

Folha - Nos anos 20, segundo o sr., há o confronto com a cultura de massa americana.
Roger -
Isso atinge bastante os intelectuais franceses, que até então pensavam que nunca haveria competição nesse domínio, pois eles se julgavam superiores aos intelectuais americanos. Não compreendem muito bem a cultura de massa, sobretudo em relação ao cinema. A maioria dos intelectuais não considerava o cinema como uma arte. À parte surrealistas e amadores de cinema, os intelectuais franceses são anticinema.

Folha - O antiamericanismo foi mantido pela intelectualidade?
Roger -
Se trata de um fenômeno que alcançou importância na França desde o século 18. Esse movimento intelectual, que passou a tomar cada vez mais espaço na paisagem ideológica e política, foi a força do antiamericanismo.
Foram poucos os movimentos populares antiamericanos. São os grandes escritores, tanto as pessoas que flertam com a extrema-direita como os marxistas, que fazem a crítica da mecanização de alienação americana oposta à boa mecanização soviética.

Folha - Hoje é permitido criticar os EUA sem ser antiamericano?
Roger -
Um amigo americano tem uma fórmula que diz "ser antiamericano é odiar os americanos mais do que o necessário". No antiamericanismo não estamos mais na crítica, e sim na ordem do irracional, de mitologias já construídas. Se nos livramos do antiamericanismo, nos tornamos melhores críticos dos EUA.


L'ENNEMI AMÉRICAIN GENÉALOGIE DE L'ANTIAMÉRICANISME FRANÇAIS. Autor: Philippe Roger. Editora: Seuil. Quanto: 23 (602 págs.).


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