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Em ensaio, historiador francês revolve os mitos e as antigas origens do antiamericanismo
Rancores remotos
Associated Press
![](../images/i2106200303.jpg) |
Milhares de manifestantes destroem bandeiras americanas em protesto contra os EUA em frente à Prefeitura de Seul, na Coréia do Sul |
FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS
O recente conflito no Iraque
provocou acalorados embates diplomáticos e midiáticos entre
Washington e Paris, reavivando
antigas animosidades e lugares-comuns sobre o antiamericanismo que existe na França.
Reticente às emoções fáceis, o
professor francês (e editor da revista "Critique") Philippe Roger
decidiu encarar o acalorado tema
como objeto de estudo científico.
Dedicou sete anos para escrever o
minucioso ensaio "L'Ennemi
Américain - Genéalogie de l'antiaméricanisme français" (O Inimigo Americano - Genealogia do
antiamericanismo francês).
Na obra, ele procura desconstruir conceitos que se formaram
pela força do tempo. Não, o antiamericanismo não é um mito, uma
paixão ou uma ideologia, diz. Ele
deve ser analisado na sua tradição
como um discurso, um fenômeno
não-conjuntural quase autônomo
em relação à atualidade.
A origem do antiamericanismo
data do século 18, pelas idéias do
naturalista Georgs Buffon, que
descreve os EUA como uma terra
desafortunada, infértil e povoada
de nativos débeis capazes de degenerar os imigrantes europeus.
Em seu apartamento em Paris,
Philippe Roger recebeu a Folha.
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Folha - Como ocorre o nascimento do antiamericanismo francês?
Philippe Roger - É um prólogo
bastante estranho, mas interessante de ser lembrado porque temos essa imagem da Europa, e sobretudo da França, numa espécie
de comunhão democrática em
torno das idéias do Iluminismo
com os EUA. Sobretudo com os
EUA da Independência.
Foi um episódio entusiasta, mas
que durou alguns anos, enquadrado por essa visão negativa de
um continente deserdado, uma
terra pantanosa, pútrida, na qual
todos os animais são menores do
que no resto do mundo. Há um
discurso de difamação dos EUA e
que inquietou os "pais fundadores americanos", como Jefferson.
Folha - No final do século, a situação se torna ainda pior.
Roger - A partir de 1792, as relações se degradam violentamente,
porque os americanos ficaram
atemorizados pela radicalização
da Revolução Francesa. E Washington, que era amigo da França,
decidiu não intervir nos "affaires"
europeus quando a república
francesa foi ameaçada pelos soberanos da Europa, sob o comando
da Grã-Bretanha.
Esse primeiro ato de isolacionismo americano é encarado com
amargura sobretudo quando, na
França, acaba-se por saber que
não só os americanos não queriam nos ajudar, mas ainda assinaram um tratado secreto com a
Grã-Bretanha. Foi a gota d'água, e
surge uma campanha antiamericana sob o tema da ingratidão.
Folha - O sr. coloca o surgimento
de um antiamericanismo estético
no início do século 19. Dois escritores se unem na crítica aos EUA,
Stendhal e Baudelaire.
Roger - Insisto nesses dois, particularmente, porque são bastante
simbólicos: Stendhal, à esquerda,
e Baudelaire, à direita. Os dois dizem praticamente a mesma coisa:
trata-se de um país invivível, no
qual não há cultura, não há beleza, obras de arte, monumentos.
Stendhal diz que não há ópera,
portanto ele não poderia habitar
os EUA. Baudelaire vai mais longe, descreve a americanização do
mundo. Introduz a palavra americanização, que representaria um
planeta uniforme, cinza, dominado pela técnica e a ditadura.
Baudelaire pensa que não podem existir liberdades democráticas num país no qual a tecnologia
determina os comportamentos.
Praticamente todos os intelectuais franceses vão dizer, nos anos
30, que se é menos livre nos EUA
do que nos países totalitários da
Europa. O que é bastante grave,
quando se vê a progressão do fascismo, do nazismo e da URSS.
Folha - Nos anos 20, segundo o
sr., há o confronto com a cultura de
massa americana.
Roger - Isso atinge bastante os
intelectuais franceses, que até então pensavam que nunca haveria
competição nesse domínio, pois
eles se julgavam superiores aos intelectuais americanos. Não compreendem muito bem a cultura de
massa, sobretudo em relação ao
cinema. A maioria dos intelectuais não considerava o cinema
como uma arte. À parte surrealistas e amadores de cinema, os intelectuais franceses são anticinema.
Folha - O antiamericanismo foi
mantido pela intelectualidade?
Roger - Se trata de um fenômeno
que alcançou importância na
França desde o século 18. Esse
movimento intelectual, que passou a tomar cada vez mais espaço
na paisagem ideológica e política,
foi a força do antiamericanismo.
Foram poucos os movimentos
populares antiamericanos. São os
grandes escritores, tanto as pessoas que flertam com a extrema-direita como os marxistas, que fazem a crítica da mecanização de
alienação americana oposta à boa
mecanização soviética.
Folha - Hoje é permitido criticar
os EUA sem ser antiamericano?
Roger - Um amigo americano
tem uma fórmula que diz "ser antiamericano é odiar os americanos mais do que o necessário". No
antiamericanismo não estamos
mais na crítica, e sim na ordem do
irracional, de mitologias já construídas. Se nos livramos do antiamericanismo, nos tornamos melhores críticos dos EUA.
L'ENNEMI AMÉRICAIN GENÉALOGIE
DE L'ANTIAMÉRICANISME FRANÇAIS.
Autor: Philippe Roger. Editora: Seuil.
Quanto: 23 (602 págs.).
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