São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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LIVROS

Crítica

Em "Veneno Remédio", Wisnik "parafusa" o marxismo uspiano

Livro vê no futebol um campo privilegiado de expressão do país como uma "droga"

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Deixemos o pontapé inicial com José Miguel Wisnik: "O futebol não é apenas a ocasião para estudar a sociedade à sua volta, mas um dos elementos nucleares nos quais pode se ler, num nível não verbal, o fato irrebatível de que o Brasil é uma droga, em toda a potência ambivalente da expressão: a substância não substancial que se caracteriza por ser ao mesmo tempo mortífera e salvadora, redentora e destrutiva, dividindo-se e repondo-se, sem se decidir entre essas faces opostas" (páginas 244 e 245).
O trecho nos instala no miolo do argumento de "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil". Não é um livro fácil, embora seja delicioso. O próprio autor nos adverte desde o início: entre a falta de apetite teórico do público boleiro e o desdém da inteligentsia pela sabedoria dos pés, "Veneno Remédio" não tem leitor evidente. Ao final de mais de 400 páginas, entende-se por que Tostão, o craque esclarecido, desponta naturalmente como uma espécie de interlocutor ideal de Wisnik.
Num ambiente acadêmico retraído e aviltado como tem sido o brasileiro; numa época em que o debate nacional parece capturado pela lógica sectária de um Fla x Flu mal jogado entre os que são pró ou contra Lula; quando, além disso, os horizontes das próprias ciências humanas se vêem diminuídos -nesse terreno minado o livro de Wisnik surge como um grande acontecimento intelectual.
As quatro partes de "Veneno Remédio" se dividem de maneira sugestiva: a primeira ("Preliminares") nos aquece para o jogo. Nela, o capítulo "A Ilha de São Vicente", obra-prima do relato autobiográfico, realiza uma espécie de educação sentimental que dá lastro às ambições do livro: "entre o bairro e o mundo", o adolescente que participa das peladas à beira-mar em campos de areia sem linhas definidas é o mesmo que testemunha in loco o surgimento de Pelé como se aquilo tudo fosse muito natural.
As partes 2 ("A Quadratura do Circo: a Invenção do Futebol") e 3 ("A Elipse: O Futebol Brasileiro") do livro seriam o 1º e o 2º tempo, reunindo o essencial do jogo. Acaso ou não, os capítulo somados são 45.
Além do tempo regulamentar, "Veneno Remédio" se estende, na sua última parte ("Bola ao Alto: Interpretações do Brasil"), por mais dois capítulos de acréscimos, nos quais se instala algo como uma "mesa-redonda Brasil em Debate". Como nas noites de domingo, talvez esse epílogo especulativo acabe ofuscando o próprio jogo -ou o que veio antes.
Seria uma injustiça com Wisnik e uma pena para o leitor. Mas há ainda outro risco, este extensivo ao livro inteiro: vê-lo como um duelo frontal entre Gilberto Freyre e a USP, como se entrassem em campo o Marxismo Uspiano Esporte Clube contra o Mestre de Apipucos Futebol Clube para disputar o que, afinal, nos define: o veneno amargo da escravidão ou o doce remédio da mestiçagem.
Wisnik eleva esse jogo a outro patamar. Se mostra inegável simpatia pela obra de Gilberto Freyre, é como um típico filho da USP que investe contra a visão envenenada do país gestada na sua própria casa.
De maneira muito breve, o autor nos propõe um resgate do sentido original do ensaio clássico de Antonio Candido sobre a "dialética da malandragem", enfatizando nele a descoberta de um "encantador mundo sem culpa, de ânimo democrático e tolerante" (pág. 424), mundo que existe no interior brutal de uma sociedade escravocrata.
Se essa ambivalência se perdeu ou foi ocultada do texto de Candido, diz Wisnik, a culpa foi de seus herdeiros: o crítico Roberto Schwarz e sobretudo o filósofo Paulo Arantes, em quem o autor reprova o "júbilo hipercrítico" escancarado no diagnóstico fatalista de que o "futuro do mundo é o Brasil e o Brasil é o fim do mundo".
Como o "João" que é parafusado por um drible na canção "O Futebol" (1989), de Chico Buarque, Wisnik "parafusa" o marxismo uspiano, torcendo-o sobre si mesmo. E termina propondo, contra essa negatividade hiperbólica, uma espécie de antiemplastro Brás Cubas: abandonemos de vez essa idéia fixa de que "o país é ou receita de felicidade ou fracasso sem saída -ou total ou nulo, ou panacéia ou engodo, ou paradisíaco ou infernal" (pág. 408).
Mesmo sob o risco de simplificação, talvez se possa ver nesse apelo final e resignado ao bom senso algo como uma imagem refratada do realismo da era Lula.
Nada disso, porém, ofusca o brilho deste que parece ser não apenas mais um, mas "o" livro sobre o tema já escrito no país.
Alguns tenderão a ver em "Veneno Remédio" um excesso de pedaladas verbais, dribles retóricos demais para quem, afinal, fala só de um jogo de bola. Ora, todo garoto sabe, como Nelson Rodrigues, que "a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana".


VENENO REMÉDIO - O FUTEBOL E O BRASIL
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (446 págs.)
Avaliação: ótimo



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