São Paulo, Segunda-feira, 21 de Junho de 1999
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FERNANDO GABEIRA
A última guerra do século

Vivo num país tropical. Aos domingos tem futebol e nádegas molhadas e reluzentes nas banheiras dos programas de TV. Na manhã de segunda-feira, a última coisa do mundo em que você pensa é escrever sobre a decadência do Estado-nação.
Acontece que o presidente tcheco Vaclav Havel fez um belo discurso sobre esse tema no parlamento do Canadá. Ele é um escritor respeitável, mas na ânsia de justificar os bombardeios na Iugoslávia acabou forçando a mão.
Como transformar uma crítica à tese de Havel em algo palatável na manhã de segunda? Talvez estendendo ao artigo os conselhos sobre a segunda-feira: pense que é a última da semana e este é o último debate sobre a decadência do Estado-nação nos próximos sete dias.
Havel começa dizendo que a glória do Estado-nação está em declínio e esse era o mais alto valor terreno. A única justificativa para matar, a única razão para morrer. Certo ou errado, minha pátria.
Pois bem, o mundo mudou. A nova teia de contatos entre os países trouxe novos valores e modelos culturais. Os destinos estão se fundindo num só. E, queira ou não, você passou a ser responsável por tudo o que ocorre. Nesse novo mundo desenhado por Havel, firmou-se um novo pacto: os seres humanos são mais importantes do que o Estado. E onde estiverem ameaçados serão defendidos por esse novo mundo, no qual impera um respeito global pelos direitos da pessoa, uma igualdade cívica universal.
Se o Estado-nação entra em declínio, o que fazer para substituí-lo? Emocionalmente, Havel recomenda outros parâmetros para a busca da identidade: família, nossa pequena comunidade, nossa empresa ou até o planeta como um todo.
Materialmente, as tarefas do Estado seriam redistribuídas para cima e para baixo. Para cima, seriam depositadas nas mãos das entidades regionais, transnacionais e globais. No caso brasileiro, por exemplo, o Mercosul abarcaria algumas das tarefas do Estado, a Organização Mundial do Comércio outras, e assim por diante.
Para baixo, as tarefas seriam cumpridas por organizações não-governamentais e estruturas da sociedade civil. Ele não considera o processo encerrado, apenas aponta tendências.
Interessante como deixou de fora as contradições na Europa, onde micronações lutam para emergir, não só no Leste Europeu, como na Espanha e Reino Unido. Tudo bem, isso não é o centro do debate.
Tudo não passou de um preâmbulo para apontar o bombardeio da Iugoslávia como uma espécie de primeiro grande produto desse mundo avançado que surgiu do declínio do Estado-nação. Para Havel, a guerra se fez na Iugoslávia sem que houvesse nenhum grande interesse material por parte dos grandes países europeus e dos EUA. Nem material, nem territorial. Era apenas a união desinteressada visando preservar os direitos da pessoa contra os interesses do Estado.
Até deixo passar a tese de que não houve interesse econômico envolvido no bombardeio. Vou supor que o complexo industrial foi surpreendido pelos acontecimentos e nem calculou os lucros que teria com o uso de mísseis de última geração. Os lucros seriam só subproduto.
No meu entender, o lado romântico do discurso de Havel é ignorar o ato de força que está por baixo da intervenção da OTAN. Num mundo idílico, onde o direito dos seres humanos prevalece sobre o do Estado, o Haiti e outros países do Caribe poderiam intervir nos Estados Unidos caso sentissem que o Estado norte-americano estava esmagando as pessoas. No entanto, tal hipótese é impensável. Se é exagerada, podemos dar um exemplo mais palatável: por que não invadir a China e liberar o Tibete?
Simplesmente porque o buraco é mais embaixo.
Portanto, a idéia de um mundo novo, no qual os direitos humanos são preservados contra a violência do Estado, só ganha realidade com inúmeras mediações, ausentes no discurso de Havel. O "Washington Post" quantificou assim a guerra da Iugoslávia: 5000 a 0, isto é, cinco mil mortes no lado iugoslavo, zero no lado da Otan.
Ora, para fazer uma guerra onde só o inimigo morre, são necessários recursos técnicos que permitam frequentar o teatro de operações a seis mil metros de altura, deixar cair algumas bombas, e correr para o abraço. Nesse novo universo moral ressurge a pergunta de Stalin: quantos Tomahawks tem o Papa? Se compararmos com a Primeira Guerra Mundial, os números de hoje não nos confortam. Naquele conflito, morreram 5% de civis; agora, 95 % foram levados pelas bombas, o que não deixa de ser um péssimo índice para o mundo onde as pessoas valem mais que o Estado.
A frase final do discurso de Havel é muito significativa: os Estados são criações humanas, as pessoas são criaturas de Deus. É uma afirmação religiosa, sobrenatural, talvez a única que possa contornar todas essas arestas da realidade.
Nós que suplantamos o século 18 com sua idéia de Estado independente de monarcas, que construímos nações com histórias contínuas, heróis e mitos fundadores, precisamos meter Deus no meio agora que o Estado declina? É preciso encontrar fora da humanidade as razões de sua dignidade intrínseca?
O discurso de Havel me deixou meio atônito. É muito real. Faltam, no entanto, alguns detalhes que fazem a diferença. Ele quer que o declínio do Estado não seja um período tão doloroso como foi o da própria criação desse mesmo Estado. Mas o caminho que escolheu, o dos bombardeios humanitários, sinceramente, não é o mais adequado.
Esse mundo que parece emergir de um romance de capa-e-espada, onde todos se batem por um porque a injustiça contra um é a injustiça contra todos, ainda é apenas uma bela imagem. Aceitá-la numa segunda-feira significa ampliar a ressaca de uma guerra onde as vítimas retornam para as ruínas, atravessando campos minados, enquanto outra etnia, a minoria sérvia, arruma as trouxas para sua temporada no inferno .
Havel pode até acreditar que a humanidade, como valor, suplantou o Estado e que a Primeira Guerra se fez sem que estivessem envolvidos interesses nacionais. Mas o novo mundo que se descortinou no pós-Guerra está longe dessa visão idílica, pois continua definido pela lógica ancestral da supremacia do mais forte.
O que ficou bastante claro para mim não transparece no discurso de Havel: não precisamos de guerra para proteger pessoas, mas sim de políticas que protejam as pessoas das guerras, pois elas estão sofrendo ao longo de todo o planeta real: Timor, Angola, Congo, Serra Leoa, enfim, todos esses conflitos excluídos dos discursos globais.



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