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FERNANDO GABEIRA
A última guerra do século
Vivo num país tropical. Aos
domingos tem futebol e nádegas molhadas e reluzentes nas
banheiras dos programas de
TV. Na manhã de segunda-feira, a última coisa do mundo em
que você pensa é escrever sobre
a decadência do Estado-nação.
Acontece que o presidente
tcheco Vaclav Havel fez um belo discurso sobre esse tema no
parlamento do Canadá. Ele é
um escritor respeitável, mas na
ânsia de justificar os bombardeios na Iugoslávia acabou forçando a mão.
Como transformar uma crítica à tese de Havel em algo palatável na manhã de segunda?
Talvez estendendo ao artigo os
conselhos sobre a segunda-feira: pense que é a última da semana e este é o último debate
sobre a decadência do Estado-nação nos próximos sete dias.
Havel começa dizendo que a
glória do Estado-nação está em
declínio e esse era o mais alto
valor terreno. A única justificativa para matar, a única razão
para morrer. Certo ou errado,
minha pátria.
Pois bem, o mundo mudou. A
nova teia de contatos entre os
países trouxe novos valores e
modelos culturais. Os destinos
estão se fundindo num só. E,
queira ou não, você passou a
ser responsável por tudo o que
ocorre. Nesse novo mundo desenhado por Havel, firmou-se
um novo pacto: os seres humanos são mais importantes do
que o Estado. E onde estiverem
ameaçados serão defendidos
por esse novo mundo, no qual
impera um respeito global pelos direitos da pessoa, uma
igualdade cívica universal.
Se o Estado-nação entra em
declínio, o que fazer para substituí-lo? Emocionalmente, Havel recomenda outros parâmetros para a busca da identidade: família, nossa pequena comunidade, nossa empresa ou
até o planeta como um todo.
Materialmente, as tarefas do
Estado seriam redistribuídas
para cima e para baixo. Para
cima, seriam depositadas nas
mãos das entidades regionais,
transnacionais e globais. No
caso brasileiro, por exemplo, o
Mercosul abarcaria algumas
das tarefas do Estado, a Organização Mundial do Comércio
outras, e assim por diante.
Para baixo, as tarefas seriam
cumpridas por organizações
não-governamentais e estruturas da sociedade civil. Ele não
considera o processo encerrado, apenas aponta tendências.
Interessante como deixou de
fora as contradições na Europa, onde micronações lutam
para emergir, não só no Leste
Europeu, como na Espanha e
Reino Unido. Tudo bem, isso
não é o centro do debate.
Tudo não passou de um
preâmbulo para apontar o
bombardeio da Iugoslávia como uma espécie de primeiro
grande produto desse mundo
avançado que surgiu do declínio do Estado-nação. Para Havel, a guerra se fez na Iugoslávia sem que houvesse nenhum
grande interesse material por
parte dos grandes países europeus e dos EUA. Nem material,
nem territorial. Era apenas a
união desinteressada visando
preservar os direitos da pessoa
contra os interesses do Estado.
Até deixo passar a tese de que
não houve interesse econômico
envolvido no bombardeio. Vou
supor que o complexo industrial foi surpreendido pelos
acontecimentos e nem calculou
os lucros que teria com o uso de
mísseis de última geração. Os
lucros seriam só subproduto.
No meu entender, o lado romântico do discurso de Havel é
ignorar o ato de força que está
por baixo da intervenção da
OTAN. Num mundo idílico,
onde o direito dos seres humanos prevalece sobre o do Estado, o Haiti e outros países do
Caribe poderiam intervir nos
Estados Unidos caso sentissem
que o Estado norte-americano
estava esmagando as pessoas.
No entanto, tal hipótese é impensável. Se é exagerada, podemos dar um exemplo mais palatável: por que não invadir a
China e liberar o Tibete?
Simplesmente porque o buraco é mais embaixo.
Portanto, a idéia de um mundo novo, no qual os direitos humanos são preservados contra
a violência do Estado, só ganha
realidade com inúmeras mediações, ausentes no discurso
de Havel. O "Washington Post"
quantificou assim a guerra da
Iugoslávia: 5000 a 0, isto é, cinco mil mortes no lado iugoslavo, zero no lado da Otan.
Ora, para fazer uma guerra
onde só o inimigo morre, são
necessários recursos técnicos
que permitam frequentar o
teatro de operações a seis mil
metros de altura, deixar cair
algumas bombas, e correr para
o abraço. Nesse novo universo
moral ressurge a pergunta de
Stalin: quantos Tomahawks
tem o Papa? Se compararmos
com a Primeira Guerra Mundial, os números de hoje não
nos confortam. Naquele conflito, morreram 5% de civis; agora, 95 % foram levados pelas
bombas, o que não deixa de ser
um péssimo índice para o mundo onde as pessoas valem mais
que o Estado.
A frase final do discurso de
Havel é muito significativa: os
Estados são criações humanas,
as pessoas são criaturas de
Deus. É uma afirmação religiosa, sobrenatural, talvez a única
que possa contornar todas essas arestas da realidade.
Nós que suplantamos o século
18 com sua idéia de Estado independente de monarcas, que
construímos nações com histórias contínuas, heróis e mitos
fundadores, precisamos meter
Deus no meio agora que o Estado declina? É preciso encontrar
fora da humanidade as razões
de sua dignidade intrínseca?
O discurso de Havel me deixou meio atônito. É muito real.
Faltam, no entanto, alguns detalhes que fazem a diferença.
Ele quer que o declínio do Estado não seja um período tão doloroso como foi o da própria
criação desse mesmo Estado.
Mas o caminho que escolheu, o
dos bombardeios humanitários, sinceramente, não é o
mais adequado.
Esse mundo que parece emergir de um romance de capa-e-espada, onde todos se batem
por um porque a injustiça contra um é a injustiça contra todos, ainda é apenas uma bela
imagem. Aceitá-la numa segunda-feira significa ampliar a
ressaca de uma guerra onde as
vítimas retornam para as ruínas, atravessando campos minados, enquanto outra etnia, a
minoria sérvia, arruma as
trouxas para sua temporada
no inferno .
Havel pode até acreditar que
a humanidade, como valor, suplantou o Estado e que a Primeira Guerra se fez sem que estivessem envolvidos interesses
nacionais. Mas o novo mundo
que se descortinou no pós-Guerra está longe dessa visão
idílica, pois continua definido
pela lógica ancestral da supremacia do mais forte.
O que ficou bastante claro para mim não transparece no discurso de Havel: não precisamos
de guerra para proteger pessoas, mas sim de políticas que
protejam as pessoas das guerras, pois elas estão sofrendo ao
longo de todo o planeta real:
Timor, Angola, Congo, Serra
Leoa, enfim, todos esses conflitos excluídos dos discursos globais.
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