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RESENHA DA SEMANA
Fantasia e circunstância
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
De uma forma discreta, "Foi
Assim" (1947), romance da
italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), parece dizer que a vida é
feita de ilusão e cansaço, um
confronto permanente entre
fantasia e realidade que termina
com a rendição da primeira pela
segunda, e a extinção de todas as
expectativas.
Natalia Ginzburg nasceu em
Palermo, mas iniciou sua vida literária em Turim, ligada ao círculo de intelectuais que se reunia em torno da prestigiosa editora Einaudi -Leone Ginzburg,
com quem se casou no ano de
1938, e Cesare Pavese, entre outros.
O marido foi perseguido pelo
fascismo e morreu na prisão, em
1944. Em 1950, a escritora se casou de novo, mudou-se para
Roma e passou a se dedicar exclusivamente aos filhos (entre
eles, o historiador Carlo Ginzburg) e à literatura. Ficou viúva
mais uma vez em 1969 e foi eleita
deputada, pela esquerda independente, em 1983.
Embora a história narrada em
"Foi Assim" (a confissão de uma
mulher que mata o marido com
um tiro no meio dos olhos logo
nas primeiras linhas) não seja
autobiográfica, é espantosa a autenticidade e o conhecimento de
causa com que a autora expressa
os sentimentos de sua personagem. A escritora privilegia uma
ótica que, não sendo feminista
nem exclusivamente feminina,
parte da experiência familiar e
cotidiana da mulher como base
de uma visão desiludida do
mundo.
A narradora, moça do interior, vive numa pensão em Turim, onde é professora. Está na
idade de se casar. Conhece um
homem mais velho que, embora
não lhe demonstre nenhuma
paixão, passa a lhe dar atenção.
É o suficiente. Ela também não
gosta especialmente dele. Casam-se. E é assim que começa o
processo das desilusões, quando
a fantasia passa a dar lugar às
circunstâncias.
"Uma moça quando fica muito sozinha e tem uma vida bastante monótona e cansativa com
poucos trocados na bolsa e luvas
gastas, corre atrás de muitas coisas com a fantasia e se encontra
desarmada quando se depara
com erros e perigos que a fantasia prepara todos os dias a todas
as moças."
O casamento, antes sonhado
como libertação de uma vida
monótona e solitária, é reduzido
a uma constatação de um ciclo
inevitável de adaptações progressivas à realidade. O amadurecimento passa a ser a capacidade de adequar o desejo e a
imaginação às possibilidades.
A moça vai se contentando cada vez com menos (tenta se
adaptar como pode à idéia de
compartilhar o marido com
uma amante etc), num processo
em que a fantasia ainda tenta resistir com uma margem de manobra cada vez mais exígua.
O mais cruel, contudo, é anterior a esse processo, é o que está
na própria origem das expectativas, na imagem que cada um
faz de si e dos outros. Antes de se
casar, a mulher imagina que
trairá o homem mais velho na
primeira oportunidade. Ela o
imagina apaixonado, mas será
ela quem ficará desesperada a
ponto de não poder suportar a
traição e o abandono.
Mesmo depois de a realidade
já ter derrubado boa parte de
suas ilusões, ela continua tentando fantasiar, nem que seja
apenas como uma forma compensatória de sobrevivência. O
assassinato surge, então, como
um modo de pôr fim ao último
resquício de expectativa. É a tentativa desesperada de criar um
estado em que já não pode haver
desejo nenhum. Uma forma de
pôr tudo no passado, na certeza
do que já foi, eliminando a dúvida insuportável do que ainda
pode ser: "Se eu fosse para a cadeia ou não fosse para a cadeia
não contava porque o que contava era o que já acontecera".
O "foi assim" do título se refere não só à confissão do crime,
mas ao tempo da desilusão. "Foi
assim" é o fato consumado, a
realidade, o contrário da fantasia, o aborto da imaginação.
E, a despeito disso, numa reviravolta irônica que é o próprio
livro, Natalia Ginzburg converte
a desilusão novamente em objeto da imaginação. Ou seja, ressuscita o desejo pelo próprio ato
de escrever, contrariando (ou
desafiando) a visão desiludida
do mundo que o romance parece expor. A confissão da narradora é a conversão da vida cotidiana, condenada a adequar-se
às circunstâncias, em criação.
Foi Assim
È Stato Così
Autora: Natalia Ginzburg
Tradução: Edson Roberto Bogas
Garcia
Ilustrações: Paulo Pasta
Editora: Berlendis e Vertecchia
Quanto: R$ 23 (112 págs.)
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