São Paulo, sábado, 21 de julho de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Fantasia e circunstância

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

De uma forma discreta, "Foi Assim" (1947), romance da italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), parece dizer que a vida é feita de ilusão e cansaço, um confronto permanente entre fantasia e realidade que termina com a rendição da primeira pela segunda, e a extinção de todas as expectativas.
Natalia Ginzburg nasceu em Palermo, mas iniciou sua vida literária em Turim, ligada ao círculo de intelectuais que se reunia em torno da prestigiosa editora Einaudi -Leone Ginzburg, com quem se casou no ano de 1938, e Cesare Pavese, entre outros.
O marido foi perseguido pelo fascismo e morreu na prisão, em 1944. Em 1950, a escritora se casou de novo, mudou-se para Roma e passou a se dedicar exclusivamente aos filhos (entre eles, o historiador Carlo Ginzburg) e à literatura. Ficou viúva mais uma vez em 1969 e foi eleita deputada, pela esquerda independente, em 1983.
Embora a história narrada em "Foi Assim" (a confissão de uma mulher que mata o marido com um tiro no meio dos olhos logo nas primeiras linhas) não seja autobiográfica, é espantosa a autenticidade e o conhecimento de causa com que a autora expressa os sentimentos de sua personagem. A escritora privilegia uma ótica que, não sendo feminista nem exclusivamente feminina, parte da experiência familiar e cotidiana da mulher como base de uma visão desiludida do mundo.
A narradora, moça do interior, vive numa pensão em Turim, onde é professora. Está na idade de se casar. Conhece um homem mais velho que, embora não lhe demonstre nenhuma paixão, passa a lhe dar atenção. É o suficiente. Ela também não gosta especialmente dele. Casam-se. E é assim que começa o processo das desilusões, quando a fantasia passa a dar lugar às circunstâncias.
"Uma moça quando fica muito sozinha e tem uma vida bastante monótona e cansativa com poucos trocados na bolsa e luvas gastas, corre atrás de muitas coisas com a fantasia e se encontra desarmada quando se depara com erros e perigos que a fantasia prepara todos os dias a todas as moças."
O casamento, antes sonhado como libertação de uma vida monótona e solitária, é reduzido a uma constatação de um ciclo inevitável de adaptações progressivas à realidade. O amadurecimento passa a ser a capacidade de adequar o desejo e a imaginação às possibilidades.
A moça vai se contentando cada vez com menos (tenta se adaptar como pode à idéia de compartilhar o marido com uma amante etc), num processo em que a fantasia ainda tenta resistir com uma margem de manobra cada vez mais exígua.
O mais cruel, contudo, é anterior a esse processo, é o que está na própria origem das expectativas, na imagem que cada um faz de si e dos outros. Antes de se casar, a mulher imagina que trairá o homem mais velho na primeira oportunidade. Ela o imagina apaixonado, mas será ela quem ficará desesperada a ponto de não poder suportar a traição e o abandono.
Mesmo depois de a realidade já ter derrubado boa parte de suas ilusões, ela continua tentando fantasiar, nem que seja apenas como uma forma compensatória de sobrevivência. O assassinato surge, então, como um modo de pôr fim ao último resquício de expectativa. É a tentativa desesperada de criar um estado em que já não pode haver desejo nenhum. Uma forma de pôr tudo no passado, na certeza do que já foi, eliminando a dúvida insuportável do que ainda pode ser: "Se eu fosse para a cadeia ou não fosse para a cadeia não contava porque o que contava era o que já acontecera".
O "foi assim" do título se refere não só à confissão do crime, mas ao tempo da desilusão. "Foi assim" é o fato consumado, a realidade, o contrário da fantasia, o aborto da imaginação.
E, a despeito disso, numa reviravolta irônica que é o próprio livro, Natalia Ginzburg converte a desilusão novamente em objeto da imaginação. Ou seja, ressuscita o desejo pelo próprio ato de escrever, contrariando (ou desafiando) a visão desiludida do mundo que o romance parece expor. A confissão da narradora é a conversão da vida cotidiana, condenada a adequar-se às circunstâncias, em criação.

Foi Assim
È Stato Così
    
Autora: Natalia Ginzburg
Tradução: Edson Roberto Bogas Garcia
Ilustrações: Paulo Pasta
Editora: Berlendis e Vertecchia
Quanto: R$ 23 (112 págs.)



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