São Paulo, sábado, 21 de julho de 2001

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"VIDA E OBRA DE JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS"

Autor aparece em permanente conflito

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Os biógrafos de grandes artistas enfrentam, em geral, duas tentações: a de canonizar o biografado e a de explicar-lhe a obra a partir dos acidentes de sua vida pessoal.
Desses dois perigos a cientista social lisboeta Maria Filomena Mónica escapa heroicamente em sua recente biografia de Eça de Queirós (1845-1900). Ela mergulhou durante seis anos na literatura e na documentação sobre Eça com um eixo claro de abordagem: as relações do escritor com seu país e seu tempo.
O autor de "Os Maias" emerge dessa interpretação como um homem em permanente conflito com a condição portuguesa, nos termos em que ela se apresentava no final do século 19.
Tendo nascido na província, estudado em Coimbra, vivido no Porto e em Lisboa e posteriormente seguido carreira diplomática em Cuba, Inglaterra e França, Eça estava numa posição privilegiada -nem dentro, nem fora- para observar seu país.
E o que via era uma sociedade moralmente retrógrada, uma economia atrasada e dependente, uma inteligência estagnada.
Contra esse estado de coisas, o escritor assestou primeiro as armas da sátira e da crítica jornalística, depois a implacável síntese de suas obras literárias.
Logo de início, a biógrafa descarta as interpretações que vêem na virulência da literatura de Eça um reflexo de sua curiosa história familiar (nascido quando seus pais ainda não eram casados, foi criado pela avó e só aos 21 anos passou a viver com a família, que praticamente não conhecia).
Filomena Mónica também não dá muita importância aos inúmeros casos amorosos do escritor, embora detecte em alguns deles a inspiração para determinadas páginas de seus romances.
A autora parece mais interessada no modo como Eça plasmou em seus romances uma visão da sociedade portuguesa influenciada pela literatura realista francesa (Flaubert e Zola, especialmente) e pelas idéias políticas de Proudhon, além, claro, de sua própria experiência pessoal.
Mónica se detém longamente na recepção dos livros de Eça em seu tempo. Embora tenha logo se tornado célebre, o escritor era pouco lido (Portugal tinha então 80% de analfabetos) e menos ainda compreendido.
Seu primeiro grande sucesso, "O Primo Basílio", era o livro de que menos gostava: "Uma obra falsa, ridícula, afetada, disforme, piegas", escreveu, numa carta a Ramalho Ortigão.
A crítica da época, com raras exceções, reconhecia o talento de Eça, mas censurava-lhe a ousadia moral (por conta de seus incestos e adultérios, que chocaram até Machado de Assis), o antipatriotismo e o barbarismo da linguagem, que uns tachavam de pobre, outros de afrancesada.
Curiosamente, foi um crítico de pequena expressão, Luís de Magalhães, que melhor defendeu a prosa de Eça: "Português impuro, mestiço e corrupto, se quiserem, mas duma maleabilidade de expressão, duma harmonia de contorno, dum pitoresco de frase, duma tal riqueza de colorido, de nuances quase inatingíveis (...) que a gente deixa ir nele o espírito como um barco abandonado".
A dificuldade de fazer-se compreender por seus conterrâneos e a angústia de saber-se representante de uma literatura com pouca penetração internacional talvez expliquem o fato notável de que, depois de "Os Maias" (1888), Eça não tenha publicado mais nada em vida, embora não tenha parado de escrever.
Algumas de suas obras-primas, como "A Cidade e as Serras" e "A Ilustre Casa de Ramires", só foram publicadas postumamente. E "A Tragédia da Rua das Flores" só viu a luz em 1980, mais de cem anos depois de escrita.
Só esse dado já diz muito, talvez, sobre o desacordo entre Eça de Queirós e o país que ele retratou como ninguém.

Eça - Vida e Obra de José Maria Eça de Queirós     
Autora: Maria Filomena Mónica
Editora: Record
Quanto: R$ 45 (504 págs.)



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