|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"VIDA E OBRA DE JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS"
Autor aparece em permanente conflito
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Os biógrafos de grandes artistas enfrentam, em geral,
duas tentações: a de canonizar o
biografado e a de explicar-lhe a
obra a partir dos acidentes de sua
vida pessoal.
Desses dois perigos a cientista
social lisboeta Maria Filomena
Mónica escapa heroicamente em
sua recente biografia de Eça de
Queirós (1845-1900). Ela mergulhou durante seis anos na literatura e na documentação sobre Eça
com um eixo claro de abordagem:
as relações do escritor com seu
país e seu tempo.
O autor de "Os Maias" emerge
dessa interpretação como um homem em permanente conflito
com a condição portuguesa, nos
termos em que ela se apresentava
no final do século 19.
Tendo nascido na província, estudado em Coimbra, vivido no
Porto e em Lisboa e posteriormente seguido carreira diplomática em Cuba, Inglaterra e França,
Eça estava numa posição privilegiada -nem dentro, nem fora-
para observar seu país.
E o que via era uma sociedade
moralmente retrógrada, uma economia atrasada e dependente,
uma inteligência estagnada.
Contra esse estado de coisas, o
escritor assestou primeiro as armas da sátira e da crítica jornalística, depois a implacável síntese
de suas obras literárias.
Logo de início, a biógrafa descarta as interpretações que vêem
na virulência da literatura de Eça
um reflexo de sua curiosa história
familiar (nascido quando seus
pais ainda não eram casados, foi
criado pela avó e só aos 21 anos
passou a viver com a família, que
praticamente não conhecia).
Filomena Mónica também não
dá muita importância aos inúmeros casos amorosos do escritor,
embora detecte em alguns deles a
inspiração para determinadas páginas de seus romances.
A autora parece mais interessada no modo como Eça plasmou
em seus romances uma visão da
sociedade portuguesa influenciada pela literatura realista francesa
(Flaubert e Zola, especialmente) e
pelas idéias políticas de Proudhon, além, claro, de sua própria
experiência pessoal.
Mónica se detém longamente
na recepção dos livros de Eça em
seu tempo. Embora tenha logo se
tornado célebre, o escritor era
pouco lido (Portugal tinha então
80% de analfabetos) e menos ainda compreendido.
Seu primeiro grande sucesso,
"O Primo Basílio", era o livro de
que menos gostava: "Uma obra
falsa, ridícula, afetada, disforme,
piegas", escreveu, numa carta a
Ramalho Ortigão.
A crítica da época, com raras exceções, reconhecia o talento de
Eça, mas censurava-lhe a ousadia
moral (por conta de seus incestos
e adultérios, que chocaram até
Machado de Assis), o antipatriotismo e o barbarismo da linguagem, que uns tachavam de pobre,
outros de afrancesada.
Curiosamente, foi um crítico de
pequena expressão, Luís de Magalhães, que melhor defendeu a
prosa de Eça: "Português impuro,
mestiço e corrupto, se quiserem,
mas duma maleabilidade de expressão, duma harmonia de contorno, dum pitoresco de frase, duma tal riqueza de colorido, de
nuances quase inatingíveis (...)
que a gente deixa ir nele o espírito
como um barco abandonado".
A dificuldade de fazer-se compreender por seus conterrâneos e
a angústia de saber-se representante de uma literatura com pouca penetração internacional talvez
expliquem o fato notável de que,
depois de "Os Maias" (1888), Eça
não tenha publicado mais nada
em vida, embora não tenha parado de escrever.
Algumas de suas obras-primas,
como "A Cidade e as Serras" e "A
Ilustre Casa de Ramires", só foram publicadas postumamente. E
"A Tragédia da Rua das Flores" só
viu a luz em 1980, mais de cem
anos depois de escrita.
Só esse dado já diz muito, talvez,
sobre o desacordo entre Eça de
Queirós e o país que ele retratou
como ninguém.
Eça - Vida e Obra de José Maria
Eça de Queirós
Autora: Maria Filomena Mónica
Editora: Record
Quanto: R$ 45 (504 págs.)
Texto Anterior: Livros/lançamentos - "Um general na biblioteca": Leveza do escritor Italo Calvino domina a coletânea Próximo Texto: Resenha da semana: Fantasia e circunstância Índice
|