|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MEMÓRIA/LITERATURA
Com a morte de Bolaño, desaparece o criador de formas
JUAN VILLORO
DO "EL PAÍS"
Na última terça, em Barcelona
(Espanha), morreu aos 50
anos o escritor chileno Roberto
Bolaño. Um dos autores latino-americanos mais apreciados em
seu país, Bolaño aguardava um
transplante de fígado e morreu
devido a complicações hepáticas.
Conheci Bolaño em 1975, quando ele vivia no México. Encontramo-nos nos jardins da universidade, durante a entrega de um
prêmio da revista "Punto de Partida". Bolaño falou com entusiasmo de literatura russa e da nova
narrativa chilena. Alguém o parabenizou pelo terceiro lugar em
poesia, e ele comentou que merecia a advertência. Já havia desenvolvido seu irônico sorriso diagonal, tinha olheiras de leitor insone
e confiava seu cabelo aos cuidados do vento.
Aos 22 anos, Bolaño era parte da
vanguarda infra-realista, com
Mario Santiago, Bruno Montané e
outros poetas que tomaram de assalto o palácio de inverno da cultura mexicana e que, anos depois,
apareceriam transfigurados como "visceral-realistas" no romance "Los Detectives Salvajes", que
se passa em um México fantasmagórico que o autor percorre com o
auxílio de uma bússola.
Bolaño deixou o México e de
quando em quando surgiam rumores que o tornavam figura legendária. Teve os empregos mais
estranhos, conhecia cada beco de
Paris, se mudara para Barcelona,
trocara a poesia pela prosa, ganhara muitos prêmios modestos.
Em 1984, publicou um romance
escrito com Antoni García Porta,
"Consejos de um Discípulo de
Morrison a um Fanático de Joyce". Depois vieram "La Pista de
Hielo" e "La Senda de los Elefantes", mas foi só em 1996 que ele
chamou a atenção da crítica com
"La Literatura Nazi en América",
inventivo dicionário de autores
infames. Baseado no último desses autores, um piloto que escreve
poemas no céu com a cauda de
seu avião, concebeu "Estrella Distante", obra-prima sobre a perturbadora confluência entre o ultraje e a sofisticação estética.
A esse trabalho se seguiriam, em
vertiginosa sucessão, os contos de
"Llamadas Telefónicas", "Los Detectives Salvajes", que lhe valeu o
Prêmio Herralde e o Prêmio Rómulo Gallegos, os romances curtos "Amuleto" e "Nocturno de
Chile" e os relatos de "Putas Asesinas", entre outros livros.
Quanto a "Los Dectectives Salvajes", Ignacio Echevarría comentou que era "o tipo de romance que Borges teria aceito escrever". A frase se repete em todos os
idiomas para os quais a obra de
Bolaño é traduzida.
Cada texto de Bolaño sugere
uma experiência vivida até a saciedade; os detalhes são exatos e o
leitor sabe que, caso se aproxime
demais dessa janela, se cortará
nos vidros quebrados.
Em diálogo público com Echevarría, sublinhou seu apreço pela
valentia. Alguém lhe perguntou se
podia se provar valente, e ele respondeu com uma evasiva; não
quis se vangloriar sobre a maneira
pela qual enfrentava uma doença
atroz. Com estoicismo e humor
negro, se referia à sua saúde precária e à sua corrida contra o tempo para concluir o livro de contos
"El Gaucho Insufrible". Não sabíamos até que ponto conseguiria
escrevê-lo, sob a sombra da morte, com o calado heroísmo dos valentes e o apoio absoluto da mulher, Carolina. Conversador hipnótico, participava de qualquer
reunião assumindo papel central.
Polemista natural, convertia o
afeto em discussão. Roberto Bolaño jamais precisava de guia. Um
pioneiro que desprezava os mapas. Deixa uma obra que é uma
torrente de vida.
Tradução Paulo Migliacci
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Cinema: Aridez de Kiarostami reinventa a sétima arte Índice
|