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São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 2003

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MEMÓRIA/LITERATURA

Com a morte de Bolaño, desaparece o criador de formas

JUAN VILLORO
DO "EL PAÍS"

Na última terça, em Barcelona (Espanha), morreu aos 50 anos o escritor chileno Roberto Bolaño. Um dos autores latino-americanos mais apreciados em seu país, Bolaño aguardava um transplante de fígado e morreu devido a complicações hepáticas.
Conheci Bolaño em 1975, quando ele vivia no México. Encontramo-nos nos jardins da universidade, durante a entrega de um prêmio da revista "Punto de Partida". Bolaño falou com entusiasmo de literatura russa e da nova narrativa chilena. Alguém o parabenizou pelo terceiro lugar em poesia, e ele comentou que merecia a advertência. Já havia desenvolvido seu irônico sorriso diagonal, tinha olheiras de leitor insone e confiava seu cabelo aos cuidados do vento.
Aos 22 anos, Bolaño era parte da vanguarda infra-realista, com Mario Santiago, Bruno Montané e outros poetas que tomaram de assalto o palácio de inverno da cultura mexicana e que, anos depois, apareceriam transfigurados como "visceral-realistas" no romance "Los Detectives Salvajes", que se passa em um México fantasmagórico que o autor percorre com o auxílio de uma bússola.
Bolaño deixou o México e de quando em quando surgiam rumores que o tornavam figura legendária. Teve os empregos mais estranhos, conhecia cada beco de Paris, se mudara para Barcelona, trocara a poesia pela prosa, ganhara muitos prêmios modestos.
Em 1984, publicou um romance escrito com Antoni García Porta, "Consejos de um Discípulo de Morrison a um Fanático de Joyce". Depois vieram "La Pista de Hielo" e "La Senda de los Elefantes", mas foi só em 1996 que ele chamou a atenção da crítica com "La Literatura Nazi en América", inventivo dicionário de autores infames. Baseado no último desses autores, um piloto que escreve poemas no céu com a cauda de seu avião, concebeu "Estrella Distante", obra-prima sobre a perturbadora confluência entre o ultraje e a sofisticação estética.
A esse trabalho se seguiriam, em vertiginosa sucessão, os contos de "Llamadas Telefónicas", "Los Detectives Salvajes", que lhe valeu o Prêmio Herralde e o Prêmio Rómulo Gallegos, os romances curtos "Amuleto" e "Nocturno de Chile" e os relatos de "Putas Asesinas", entre outros livros.
Quanto a "Los Dectectives Salvajes", Ignacio Echevarría comentou que era "o tipo de romance que Borges teria aceito escrever". A frase se repete em todos os idiomas para os quais a obra de Bolaño é traduzida.
Cada texto de Bolaño sugere uma experiência vivida até a saciedade; os detalhes são exatos e o leitor sabe que, caso se aproxime demais dessa janela, se cortará nos vidros quebrados.
Em diálogo público com Echevarría, sublinhou seu apreço pela valentia. Alguém lhe perguntou se podia se provar valente, e ele respondeu com uma evasiva; não quis se vangloriar sobre a maneira pela qual enfrentava uma doença atroz. Com estoicismo e humor negro, se referia à sua saúde precária e à sua corrida contra o tempo para concluir o livro de contos "El Gaucho Insufrible". Não sabíamos até que ponto conseguiria escrevê-lo, sob a sombra da morte, com o calado heroísmo dos valentes e o apoio absoluto da mulher, Carolina. Conversador hipnótico, participava de qualquer reunião assumindo papel central.
Polemista natural, convertia o afeto em discussão. Roberto Bolaño jamais precisava de guia. Um pioneiro que desprezava os mapas. Deixa uma obra que é uma torrente de vida.


Tradução Paulo Migliacci


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