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CINEMA
Mostra com quatro filmes do diretor iraniano acompanha a chegada de "Dez" e inclui trilogia sobre a vida em seu país
Aridez de Kiarostami reinventa a sétima arte
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
Centenário , o cinema é um
senhor que não pára de se
reinventar. E Abbas Kiarostami,
depois de revelar ao mundo um
Irã que ninguém conhecia, é hoje
um de seus maiores reinventores.
Uma amostra desse projeto nada fácil está em cartaz nesta semana no Cinearte com quatro filmes
de Kiarostami, que acompanham
a estréia do excepcional "Dez".
Da fase descoberta, quando Kiarostami ainda era um desconhecido no Ocidente, a mostra traz
"Onde Fica a Casa de Meu Amigo" (87) e "Close Up" (90). O primeiro forma um tríptico com "E a
Vida Continua" (92) e "Através
das Oliveiras" (94). Nesses filmes,
Kiarostami retrata a vida no Irã a
partir dos efeitos devastadores de
um terremoto.
Inicia também uma reflexão sobre o próprio cinema, pondo em
cena um diretor em situações em
que a brutalidade do real desafia
qualquer convenção ficcional.
Por isso a câmera se atém demoradamente, de modo exasperante, sobre os fatos, as pessoas e
suas dores. Esse modo de filmar é
que oferece a oportunidade da revelação. Como o olhar infantil
(daí a ênfase nos personagens
crianças) que se depara pelas primeiras vezes com as dificuldades
da existência, a câmera do diretor
deixa o real impregnar o celulóide, dá-lhe a atenção suficiente e
consegue transmitir uma qualidade humanista que se tornou a
marca do cinema iraniano.
Como Rossellini, Kiarostami retoma procedimentos, como o uso
de atores amadores, que lhe permitem se abandonar ao real, em
vez de tentar formatá-lo com significados alheios. Como Rossellini, Kiarostami parte das ruínas
(lá, a guerra; aqui, um terremoto)
para tentar compreender como o
real se revela para e pelo cinema.
Em "Close Up", o dispositivo
anuncia a revolução radical realizada em "Dez". Um homem tenta
escapar da prisão pleiteando ser
um diretor. O que dá espaço para
uma reflexão (distante da aridez
metateórica) em que os mecanismos de falsificação do cinema se
desmontam um a um para deixar
impregnar o filme com os impasses de como observar a realidade
sem traí-la. Seu acabamento, em
"Dez", é obtido no genial dispositivo da câmera sem a intervenção
do diretor, numa espécie de objetivismo de altíssima potência.
A mostra se completa com
"Gosto de Cereja" (97). Aqui, o
dispositivo do carro é utilizado
como uma espécie de janela para
o mundo. Nele, o olhar e o movimento (o cinema, em suma) se
completam numa bela composição sobre como a vida emerge
mesmo do desejo de morte.
Por fim, o documentário "ABC
África" (2001) lança um desafio
ao diretor. O de mostrar uma dura realidade (a das crianças órfãs
em decorrência da Aids em Uganda) dentro de um formato mais
tradicional e sem recorrer aos
efeitos restauradores da ficção.
Depois de mostrar o drama africano, Kiarostami realiza um momento de gênio em que o cinema
avança mais uma etapa em sua
reinvenção. Sem luz, a câmera
passeia pelos corredores de um
hotel e, sem o apoio da imagem, o
significado trágico daquela experiência ganha todo o seu sentido.
Relâmpagos e trovões trazem
uma tal carga de medo e de morte
que nenhum efeito especial ainda
se mostrou capaz de inventar.
Semana Abbas Kiarostami
Onde: Cinearte (av. Paulista, 2.073, SP,
tel. 0/xx/11/3285-3696); às 14h. Até 24/7
Quanto: de R$ 8 a R$ 11
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