São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 2008

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no teatro

Dercy tinha a dignidade dos bufões

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

A carreira teatral de Dercy não pode ser medida por parâmetros comuns. Atriz de um personagem só, fosse fazendo a Dorotéia de Nelson Rodrigues ou a Dama das Camélias de Dumas Filho, o que oferecia à platéia ávida de escândalo era o caco escrachado, o palavrão aprendido com os cômicos portugueses, o cuspe na primeira fila, que, mais que agressão, era transbordamento.
Inútil ter Stanislavsky por referência, ou Brecht, que amava a espontaneidade do ator popular. A bufônica visceralidade de Dercy, que fez da sua vida espetáculo exemplar, síntese da candura de Giulietta Masina e da língua afiada de Groucho Marx, deve ser medida pelo ritual escatológico de Artaud.
Puritana que expunha o corpo desde adolescente nas revistas da Praça Tiradentes, até o desfile na Viradouro, aos 84, honrando a ambigüidade de Santa Maria Madalena, a prostituta sagrada, patrona de sua cidade natal, Dercy era a velha senhora de Dürrenmatt que desmascara o falso puritanismo às custas da própria reputação.
Dama indigna, em quem nunca deixou de vibrar o frescor da bilheteira de cinema que sonhava ser Pola Negri, Dercy seguiu exemplarmente o destino dos bufões: o de apresentar a quem quisesse um espelho distorcido que redime o grotesco de seu tempo, de assumir o ridículo para resgatar a dignidade.
No ocaso da revista, endossou as chanchadas do cinema nacional e o humor controlado da TV com a mesma sem cerimônia e a liberdade de quem nada tem a perder. O que abriu caminho para monstros sagrados díspares como Fernanda Montenegro e Regina Casé, Renato Borghi e todo o dionisíaco despudor do teatro Oficina, que mantêm o contraponto antropofágico tupiniquim ao bom mocismo de fórmulas importadas.
Como Artaud, fez da vida palco e se sobrepôs à precariedade do ofício com apego tenoz e corajoso à felicidade. Desafiou o tempo e a morte morrendo mais que centenária, deixando galopar em poucas horas uma pneumonia à que parecia inatingível, como uma piada suprema. Morre de improviso a mulher mais feliz do mundo.


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