São Paulo, terça-feira, 21 de agosto de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Lei Seca

A cláusula que os proibia de ir a bares foi idéia deles. Não viam motivo, se não pudessem tomar nada

PROPUS UM desafio a um casal de contumazes freqüentadores dos Baixos -nome com que batizaram os locais que concentram muitos bares no Rio- e das altas horas da madrugada em botequins de todos os bairros.
Duas cobaias, no final de seus 20 anos, são amostragem suficiente entre as dezenas que conheço e percorrem religiosamente o mesmo circuito. Representam estudantes cuja idade de fato corresponde à adolescência e representam adolescentes que já passaram dos 30.
A proposta: por 15 dias, desviar sua vida social do ponto de encontro por excelência do carioca -talvez do país: o botequim. Beber em casa também não valia: nada de uísque na sala depois do trabalho, vinho no apê dos amigos. Podiam circular, só não podiam beber.
A cláusula que os proibia de ir a bares, aliás, foi idéia deles. Não viam motivo, se não pudessem tomar nada. A estrela do bar é o álcool, disso ninguém duvida.
Então não colocariam os pés no mítico Capela, na Lapa; nos badalados Jobi e Bracarense, no Leblon; no Braseiro nem no Hipódromo, no Baixo Gávea, local preferido dos famosos para dar vexame no Rio.
Na primeira semana, pularam uma festa de aniversário e um casamento. Enquanto perdurasse a Lei Seca, veriam todos os filmes em cartaz, sorvendo um estranho café depois de cada sessão.
Nunca tinham se divertido tão pouco e antes se achavam divertidíssimos.
Maconha ou pó para rirem juntos outra vez, fora de cogitação: questão política não "incentivar o tráfico", como dizem.
Numa noite quase cederam ao néon da Pizzaria Guanabara, mas sabiam que a massa atrairia um tinto chileno e não conseguiriam cumprir um trato tão bobo.
Não era aposta. Era uma prova de resistência que virou questão de honra para os dois, e o dinheiro poderia estragar. O incentivo de um prêmio ao final -caso conseguissem cumprir a sentença- comprometeria os resultados.
Ele me confessou: sentiam falta tanto do brilho que o álcool dava às noites quanto um do outro. Do outro bêbado, fazendo todo mundo rir com piadas orgulhosamente toscas, da "pegação" quente quando estavam de fogo e de simplesmente desmaiar depois de transar.
Sóbria, ela era cínica: cidades como Rio e São Paulo são as capitais dos interesses flutuantes e passageiros. A marchinha de Carnaval vinha-lhe à cabeça em loop: "Quanto riso, quanta alegria. Mais de mil palhaços no salão". Para que restringir-se a um só, se as piadas envelhecem e perdem a graça?
No Rio, onde toda nudez não só é perdoada como incentivada (ninguém anda de biquíni e chinelos na Paulista), é assim que a banda toca. Rara exceção o saxofonista no metrô da Carioca soprar "It Had to Be You".
Ao final dos 15 dias, descobriram que não estavam apaixonados. Estiveram, antes, de porre. Sentindo um pouco a culpa que me cabia, levei os dois de volta a seu habitat natural.
Naquela noite paguei a conta.


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