São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Yehoshua alterna ação entre Israel e África em romance

Autor israelense contrapõe os berços do judaísmo e da humanidade no livro

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Fogo Amigo - Um Dueto", romance do escritor israelense A. B. Yehoshua (1936), passa-se durante os oito dias de Hanukah, festa judaica de refundação do Templo, quando é costume acender, num candelabro próprio, uma vela para cada dia.
Um casal sexagenário tem, então, o seu convívio alterado: a mulher decide ir à Tanzânia, a fim de partilhar com o cunhado, antigo diplomata, o luto pela irmã falecida, enquanto o marido fica em Tel Aviv, a cuidar dos negócios e do restante da família. Todo o livro se dispõe como uma alternância de capítulos entre o que se passa em Israel e África, como contraponto entre os berços do judaísmo e o da humanidade.
As duas séries têm interesse, mas suscitam narrativas de tons bem diversos. O marido engenheiro, homem prático, está às voltas com problemas de sua empresa de projetos de elevadores: o barulho dos ventos que penetram os fossos de um arranha-céu recém-construído; a garantia eterna dada por seu velho pai ao elevador privado da antiga amante; a encomenda de um elevador secreto pelo Ministério da Defesa.
A mulher, mais intelectualizada, lida com assuntos íntimos: a retomada do sentimento de luto pela perda da irmã, diluído no dia-a-dia de professora, mulher e avó; a revolta do cunhado contra Israel e os profetas bélicos de sua religião, causada tanto pela morte do filho por "fogo amigo" -isto é, pelas próprias tropas israelenses, durante uma emboscada fracassada nos territórios ocupados-, como pela consequente perda de sexualidade e da vontade de viver de sua mulher. A pontuar o percurso doloroso há uma irônica missão arqueológica de "scholars" africanos em busca de um ramo interrompido na escala evolutiva entre o macaco e o homo sapiens.

EXORCIZAR OS ESPÍRITOS
Nas duas histórias existem duas personagens envoltas em mistério e sofrimento, as quais guardam propriedades terapêuticas, taumatúrgicas até. Pelo lado israelense, é a especialista em ouvir barulhos nos elevadores e identificar suas causas: quase anã, órfã, sem idade definida; da parte africana, uma sudanesa alta, enfermeira e motorista da expedição, cujos parentes foram todos assassinados num massacre de civis.
São mulheres sem sexo e sem pertença, mas são as únicas que exorcizam os ventos e os espíritos revoltos -referidos pelo mesmo termo hebraico- que assombram as duas séries narrativas. Afora tais simetrias, não há muito em comum nas duas histórias.
O "dueto" entre elas não chega a se afinar, a menos que se force a ponto de produzir o que é ruim para ambas: sacrificar os acontecimentos, minuciosamente descritos, em favor de elementos simbólicos de uma tese pouco desenvolvida.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp


FOGO AMIGO

AUTOR A. B. Yehoshua
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Davy Bogomoletz
QUANTO R$ 54,50 (400 págs.)
AVALIAÇÃO bom




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