São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010

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CRÍTICA CONTOS

"Desgracida" traz episódios de rancor, tara e crueldade

Nova coletânea de contos de Dalton Trevisan contém cartas a Pedro Nava, Rubem Braga e Otto Lara Resende


DALTON TREVISAN SOLTA O VERBO NO LIVRO: "FALEMOS MAL DO "GRANDE SERTÃO'", E FAZ CRÍTICAS À "PIROTECNIA VERBAL" DE GUIMARÃES ROSA"


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Dalton Trevisan é como sexo e futebol: as posições e os momentos de clímax parecem sempre mais ou menos iguais, mas a gente continua gostando.
"Desgracida" não é essencialmente diverso de livros como "Pico na Veia" ou "Macho Não Ganha Flor". Estão ali suas figuras de classe média, em cenas microscópicas de tara e crueldade, às vezes reduzidas a breves diálogos.
"Trate de arrumar logo uma mulher. (...) Ao menos uma namoradinha. (...) Que seja então uma diarista!", diz o pai ao filho.
Mais à frente, num outro miniconto, duas mulheres conversam sobre uma garota abandonada pela "desgracida" da mãe, que planeja readmiti-la em casa porque, aos dez anos, "já lava uma loucinha".
A forma elíptica é a melhor maneira de captar a redução dos seres à condição de objetos, de desentranhar da linguagem corriqueira seus mecanismos de "coisificação".
Num conto mais dilatado, "Iluminação", o narrador volta à casa de uma "polaquinha", cujas coxas imaculadas lhe renderam uma "primeira iluminação erótica", no dia de seu velório o que não o impede de entrever, nas pernas da filha da prostituta morta, um "mesmo branco de nova epifania".
A morbidez das relações sociais se soma à fissura sexual (recorrente no uso de diminutivos que fuçam obscenidades) e à retórica de bolero (cuja pompa mascara pensamentos inconfessáveis). Podemos não compartilhar as taras das personagens de Dalton, mas ele reproduz a dinâmica do desejo, do deslizamento insaciável de uma sacanagem a outra na era da pornografia.
A insistência nesse universo repetitivo de pedófilos, onanistas ou crentes alucinados pelo erotismo bíblico sugere um escritor amarrado a suas obsessões. Mas obsessões que são sobretudo estilísticas, como provam as cartas do final do volume, na seção "Mal Traçadas Linhas".
A edição não esclarece quem são os destinatários, mas é fácil para identificar o memorialista Pedro Nava e os cronistas Otto Lara Resende e Rubem Braga. Dalton solta o verbo: "Falemos mal do "Grande Sertão'", e faz críticas à "pirotecnia verbal" de Guimarães Rosa na "história menos plausível na literatura de travesti".
E, salivando maldade contra "O General em Seu Labirinto", ele diz que Gabriel García Márquez "só fala por epigrama e aforismo, longo monólogo com a posteridade" comentário que vale como retrato em negativo da poética do próprio Danton Trevisan: um autor que busca, na forma breve e despojada, instantâneos de mortalidade.


DESGRACIDA

AUTOR Dalton Trevisan
EDITORA Record
QUANTO R$ 37,90 (240 págs.)
AVALIAÇÃO bom




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