São Paulo, sexta, 21 de agosto de 1998

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GASTRONOMIA
Tentando explicar o Brasil

NINA HORTA
especial para a Folha

Chegam aqui os portugueses depois de 40 dias de viagem. Céu azul, areia branca, água boa, quase coqueiros.
E para os índios, como foi?
Foi como se baixasse à praia uma enorme loja de departamentos. Era o Eldorado, o Iguatemi, o Harrod's, o Macy's, tudo junto. Os índios nus, ali postos em sossego, são colocados de sopetão, sem preparo ou aviso, diante de milhares de objetos de desejo.
Chapéus, lenços, casacos, camisas, cuecas, meias, ligas, sapatos, tamancos, botas. Correntes de ouro, anéis, roupas de linho, de cama e mesa, mobílias, tapetes.
E a seção de ferramentas? De enlouquecer. Sem as mulheres por perto ficaram horas perdidas encarando os martelos, enxós, machados, pregos, e as facas, que facas, de todo o tamanho e feitio. Metal... Correram de volta à terra para buscar dinheiro e começar a compração. Trouxeram esplendores de penas, contas, conchas.
E o que ganhavam de volta? Carapuças vermelhas. Só barretinhos vermelhos.
Enfastiam-se, dão as costas, fazem má-criação velada devolvendo o degredado paparazzo com seus presentes de dois a três míseros barretes e não lhes mostraram as intimidades.
E o escrivão Caminha estranha. Ganham barretes e somem. Do que tiro ser gente bestial e de pouco saber.
Do grande shopping flutuante nossos índios só pareceram detestar a Praça da Alimentação.
Deram-lhes de comer, pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer nada daquilo; e se alguma coisa provaram logo a lançaram fora.
Suspeito, no caso, de comida velha, faisandée, e água salobra. E do velho fenômeno de barriga cheia. E cheia de quê?
O que teriam comido antes de entrar no barco? Podemos imaginar o cardápio.
De entrada, trazidos pela doces cunhãs enquanto o almoço se aprontava, uns amendoins salgados, cozidos ou torrados. Ostras e camarões enormes nas suas cascas, passados de leve no braseiro. Milho assado, tenro, na espiga, talvez?
Enquanto petiscavam o peixe pescado há pouco, chamuscava a pele no fogo. Ou o tapir moqueado se aquecia bem alto, sobre as brasas. No meio delas, rubras, cozinhava a batata-doce e o palmito na casca...
Para assentar o estômago sempre era bom uma água bem limpa e bem gelada com um tanto de farinha inchada, mas pouca. Ou uma cuia com mel, água e farinha, raspada com os dedos.
Mais tarde, na rede, frutas para brincar com o paladar, tirar a ardência da pimenta, frutas da época, que não eram muitas. Pitomba, araticum, uvaia, umbu, cambucá, pitanga, abacaxi, araçá, cajá-manga, grumixama, mamão, maracujá doce, ingá da margem do rio.
É bom não esquecer as crianças alvoroçadas com tanta novidade que entreviam em meio à ramaria. Brincando entre ataques de riso, imitando os portugueses, não acreditando naquele degredado de botas de cano, camisa mourisca, chapelão, a suar e a presentear seus barretinhos. Logo para quem?
Os donos dos mais belos adornos de cabeça do mundo! Os meninos andavam com folhas enroladas às pernas fingindo botas, palhas de milho caindo do queixo como barbas. Nas suas próprias fogueirinhas ou aproveitando um canto do fogão da mãe, assavam gulodices, fingindo de caçadores e torrando caracóis, bichos-de-taquara e tatuís de praia. Coisas que estalavam na boca. Nos espetos, preás e lagartos. As mães com um sorriso preparavam beijus bem pequenos para acompanharem a "caçada" e as coxinhas de rã. Se non é vero... tentando explicar o Brasil.
E temos mais entrelinhas, como o mistério da galinha velha, que ficam para outra vez.

E-mail: ninahort@uol.com.br



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