São Paulo, sexta, 21 de agosto de 1998

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ARTES PLÁSTICAS - CRÍTICA
O American dream e o monge

JOSÉ ROBERTO AGUILAR
especial para a Folha

A Ilustrada me convidou para escrever sobre Romero Britto. Como artista plástico e com forte sentido cooperativista, senti-me desconfortável ao criticar um colega. Mas, como a arte é universal e a pintura impessoal, deixei os pruridos vitorianos de lado: arregaço as mangas e mando brasa.
As artes plásticas são a linguagem mais revolucionária do Brasil. Depois de décadas de intenso profissionalismo e diálogo com o exterior, principalmente com as bienais, chegamos agora ao luxo de poder agrupar mais de cem artistas de primeira linha.
Dá para formar dez times de futebol para ganhar qualquer Copa sem curador Zagallo nenhum para botar defeito.
Abro o jornal e vejo as exposições da semana: Nelson Leirner, Nuno Ramos, Arthur Lescher, Hércules Barsotti, Niura Bellavinha, Arthur Omar, a "Primeira", de jovens artistas, José Bechara. O paulistano está tão mal-acostumado quanto os romanos que comiam línguas de colibri... E Romero Britto e Carlos Uchôa, dos quais vamos falar.
Segunda-feira, duas da tarde, entro na galeria São Paulo. Tento deixar meus preconceitos do lado de fora. E talvez uma pitada de inveja também. Romero Britto fatura milhões, é uma indústria imagética. Em dólares, um mês dele é igual a cinco anos meus.
Evoquei o deus Warhol para surfar na pop art de Britto. Com 20 exemplares imaginários da "Interview" mais a proteção dos arcanjos Basquiat e Keith Hering mais a banana do Andy na capa do Velvet Underground, assobiando Lou Reed, entrei para gostar.
Não adiantou. Encontrei uma arte decorativa fácil, diluída num universo infantil sem o mínimo traço de questionamento existencial. Uma mistura da arte do nacional-socialismo alemão de mãos dadas com a arte bolchevique stalinista temperada num caldeirão do Walt Disney. Nesse ambiente de American dream, Faustão é Kierkegaard, Ratinho é Pascal.
Tentei sair sorrateiramente, quando Regina Boni me chamou: "Oi, Aguilar, você por aqui? Deixe-me apresentar o artista". Romero é uma pessoa simpaticíssima. Transparente. Perguntei a ele sobre suas raízes no Recife, quando pintava cajus, ele não se sentiu à vontade em rever essas raízes.
Daí notei objetos sobre as mesas. Uma garrafa de Absolut, magnificamente pintada. Uma caixa de lata do licor Grand Marnier, estupenda. Surgiu a luz. Romero Britto é um excelente designer, intuitivo ou não, é um excelente designer. Aliviado por gostar de alguma coisa, continuei a conversa até com uma ponta de orgulho de esse brasileiro ter realizado seu American dream, mesmo que para mim seja um American nightmare.
Saí da galeria, dei partida na minha Ipanema prateada, peguei a Estados Unidos, virei à esquerda na Colômbia e fui ao MuBE ver a exposição de meu amigo monge Carlos Uchôa. Carlos é um misto de São Tomás de Aquino, Mira Schendel e príncipe Mischkin. Estudamos no mesmo colégio (Dante Alighieri), eu antes, ele depois.
Conversamos e concordamos muitas vezes. Depois que ele entrou para o convento, nunca mais o vi. Ele não estava no museu, aliás eu era o único na sala. Suas pinturas não procuram agradar a ninguém. Expressam a dor da busca, da procura, e a alegria e a leveza do achado. Vísceras e asas. Ao vê-las, cheguei em casa, caí na história, me extasiei. O sangue do humanismo corria nas minhas veias cantando "Tico-Tico no Fubá".
Mesmo sozinho, sentia que pelos meus lados passavam o gótico, o renascimento, o barroco, o rococó, o impressionismo, de repente do meu lado direito estava o Marcel Duchamp, do esquerdo o Joseph Beuys, o Picasso, o Helio Oiticica... Não foi delírio, mas felicidade de ter saído da barbárie e ter encontrado a civilização.
Desculpe-me, sei que essas dicotomias são enganosas, Romero Britto navega no seu universo com toda a veracidade e brilho do seu ser, assim como Carlos Uchôa. O que me fascina e deslumbra só interessa a mim. São minhas afinidades eletivas. Cartas de navegação.


José Roberto Aguilar é artista plástico, diretor da Casa das Rosas.
Exposição: O Pop de Romero Britto Onde: galeria São Paulo (av. Estados Unidos, 1.456, Jardim Paulista, região sudoeste, tel. 011/852-8855)
Quando: seg a sex, das 10h às 22h, sáb e dom, das 10h às 19h; até 30 de agosto Quanto: entrada franca Exposição: Carlos Eduardo Uchôa Onde: MuBE (r. Alemanha, 221, Jardim Europa, região sudoeste, tel. 011/881-8611) Quando: ter a dom, das 10h às 19h; até 13 de setembro Quanto: entrada franca


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