São Paulo, Sábado, 21 de Agosto de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Quando a guerra é inevitável

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Pouco se sabe da vida do ateniense Tucídides (1460-400 a.C.), além de que sobreviveu miraculosamente à peste, fracassou no comando de uma esquadra (pelo que foi obrigado a se exilar, acusado de traição) e escreveu a monumental "História da Guerra do Peloponeso", em oito volumes, sem a qual também não se saberia muita coisa sobre os combates que marcaram o início da queda de Atenas (431-404 a.C.).
Reza a lenda que, certa vez, durante os jogos olímpicos, enquanto o velho Heródoto (485-425 a.C.), considerado hoje o "pai da História" e o precursor da etnografia, da geografia e da reportagem, fazia ao público o relato de suas viagens, Tucídides ainda menino chorava de admiração entre os ouvintes.
Ao contrário do "mestre", porém, o futuro historiador não iria deixar margem para que o criticassem por incorporar antigos mitos à sua história (quando isso eventualmente acontece, ele os trata como se fossem resultado da pesquisa histórica) nem por ter relatado os fatos sem antes expor suas causas.
Tucídides nada tem a ver com a retórica dos velhos logógrafos, contadores de histórias que faziam as crônicas de suas cidades com base na tradição oral e mitológica. Nem com os poetas. O historiador vai escrever o relato de uma guerra "maior que todas as já havidas" em busca da verdade.
Ao propor a análise lógica dos fatos, vai marcar a fronteira entre mito e razão e assegurar a passagem irreversível de um à outra na origem da história ocidental.
O "Livro 1", que agora a Martins Fontes lança numa bem-cuidada edição bilíngue, com tradução e apresentação de Anna Lia Amaral de Almeida Prado e texto grego estabelecido por Jacqueline de Romilly, deixa evidente essa guinada no pensamento grego.
Ele é a apresentação das "causas verdadeiras" da guerra, uma volta reflexiva aos fatos que precederam os conflitos, um preâmbulo que vai permitir ao historiador, a partir do livro seguinte, fazer o relato dos acontecimentos, batalha a batalha, sem que reste dúvida sobre as suas razões.
Tucídides tem duas teses a defender. Primeiro (e contra o senso comum da época), que a verdadeira causa da guerra do Peloponeso (grande península ao sul da Grécia), que opôs as cidades de Esparta e seus aliados a Atenas ("uns e outros no auge de todos os seus recursos"), foi a ameaça que a potência desta última lançava sobre o equilíbrio de forças da região. Segundo, que aquela que ali começava seria a maior guerra de todas as já travadas.
A tendência da época era atribuir a origem imediata da guerra do Peloponeso a um conflito regional entre duas cidades, Corinto e Corcira. Quando uma conseguiu o apoio de Atenas, só restava à outra pedir auxílio a Esparta. A "História da Guerra do Peloponeso" quer esclarecer que, a despeito de Corinto e Corcira e de qualquer outro pretexto, a guerra entre Esparta e Atenas era historicamente inevitável.
No "Livro 1", Tucídides faz uma "arqueologia" da guerra para acabar com o mito. Faz um levantamento não só dos acontecimentos imediatamente anteriores aos conflitos (chega a criar algumas vezes um certo suspense romanesco), mas incorpora às causas a própria história da origem dos povos em confronto, a formação das forças de Esparta e do império ateniense ao longo de 50 anos de lutas.
Por que essa busca da verdade? E por que a necessidade de abolir o mito? Porque aqui o grande problema do historiador não é o passado, como se poderia supor à primeira vista. Ele está obcecado com o presente.
A "História da Guerra do Peloponeso" é, com exceção do "Livro 1", que a prepara, e sem o qual ela não poderia existir, uma história do presente, colada ao presente, redigida no presente, narrando fatos do presente.
O início da redação coincide com o início da guerra. E seu relato progride conforme avança a guerra, passo a passo. Daí ele estar -à exceção do "Livro 1", que se caracteriza sobretudo pela ambição analítica e pela lógica de causa e efeito- mais próximo da reportagem do que da história como disciplina universitária.
Está claro que o objetivo dessa obra é fazer compreender o fenômeno da guerra, mas também, ao eliminar a mitificação do passado, mostrar a grandeza e o horror do presente.
A obsessão pela verdade no relato do que é contemporâneo (o nascimento de um novo mito jornalístico), embora fruto de uma cruzada da razão contra o mito, revela uma nova e inesperada forma da tragédia: a impossibilidade de agarrar o presente (por mais imediato que seja o relato, ele será sempre história) e a substituição da ilusão segura de um passado mítico pela esperança num futuro incerto.


Avaliação:     

Livro: História da Guerra do Peloponeso - Livro 1
Autor: Tucídides
Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado
Lançamento: Martins Fontes
Quanto: R$ 27,50 (228 págs.)


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