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RESENHA DA SEMANA
Quando a guerra
é inevitável
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Pouco se sabe da vida do ateniense Tucídides (1460-400
a.C.), além de que sobreviveu
miraculosamente à peste, fracassou no comando de uma esquadra (pelo que foi obrigado a
se exilar, acusado de traição) e
escreveu a monumental "História da Guerra do Peloponeso", em oito volumes, sem a
qual também não se saberia
muita coisa sobre os combates
que marcaram o início da queda de Atenas (431-404 a.C.).
Reza a lenda que, certa vez,
durante os jogos olímpicos, enquanto o velho Heródoto (485-425 a.C.), considerado hoje o
"pai da História" e o precursor
da etnografia, da geografia e da
reportagem, fazia ao público o
relato de suas viagens, Tucídides ainda menino chorava de
admiração entre os ouvintes.
Ao contrário do "mestre",
porém, o futuro historiador
não iria deixar margem para
que o criticassem por incorporar antigos mitos à sua história
(quando isso eventualmente
acontece, ele os trata como se
fossem resultado da pesquisa
histórica) nem por ter relatado
os fatos sem antes expor suas
causas.
Tucídides nada tem a ver
com a retórica dos velhos logógrafos, contadores de histórias
que faziam as crônicas de suas
cidades com base na tradição
oral e mitológica. Nem com os
poetas. O historiador vai escrever o relato de uma guerra
"maior que todas as já havidas"
em busca da verdade.
Ao propor a análise lógica
dos fatos, vai marcar a fronteira
entre mito e razão e assegurar a
passagem irreversível de um à
outra na origem da história
ocidental.
O "Livro 1", que agora a Martins Fontes lança numa bem-cuidada edição bilíngue, com
tradução e apresentação de
Anna Lia Amaral de Almeida
Prado e texto grego estabelecido por Jacqueline de Romilly,
deixa evidente essa guinada no
pensamento grego.
Ele é a apresentação das
"causas verdadeiras" da guerra, uma volta reflexiva aos fatos
que precederam os conflitos,
um preâmbulo que vai permitir ao historiador, a partir do livro seguinte, fazer o relato dos
acontecimentos, batalha a batalha, sem que reste dúvida sobre as suas razões.
Tucídides tem duas teses a
defender. Primeiro (e contra o
senso comum da época), que a
verdadeira causa da guerra do
Peloponeso (grande península
ao sul da Grécia), que opôs as
cidades de Esparta e seus aliados a Atenas ("uns e outros no
auge de todos os seus recursos"), foi a ameaça que a potência desta última lançava sobre o
equilíbrio de forças da região.
Segundo, que aquela que ali começava seria a maior guerra de
todas as já travadas.
A tendência da época era atribuir a origem imediata da
guerra do Peloponeso a um
conflito regional entre duas cidades, Corinto e Corcira.
Quando uma conseguiu o
apoio de Atenas, só restava à
outra pedir auxílio a Esparta. A
"História da Guerra do Peloponeso" quer esclarecer que, a
despeito de Corinto e Corcira e
de qualquer outro pretexto, a
guerra entre Esparta e Atenas
era historicamente inevitável.
No "Livro 1", Tucídides faz
uma "arqueologia" da guerra
para acabar com o mito. Faz
um levantamento não só dos
acontecimentos imediatamente anteriores aos conflitos (chega a criar algumas vezes um
certo suspense romanesco),
mas incorpora às causas a própria história da origem dos povos em confronto, a formação
das forças de Esparta e do império ateniense ao longo de 50
anos de lutas.
Por que essa busca da verdade? E por que a necessidade de
abolir o mito? Porque aqui o
grande problema do historiador não é o passado, como se
poderia supor à primeira vista.
Ele está obcecado com o presente.
A "História da Guerra do Peloponeso" é, com exceção do
"Livro 1", que a prepara, e sem
o qual ela não poderia existir,
uma história do presente, colada ao presente, redigida no
presente, narrando fatos do
presente.
O início da redação coincide
com o início da guerra. E seu
relato progride conforme
avança a guerra, passo a passo.
Daí ele estar -à exceção do
"Livro 1", que se caracteriza sobretudo pela ambição analítica
e pela lógica de causa e efeito-
mais próximo da reportagem
do que da história como disciplina universitária.
Está claro que o objetivo dessa obra é fazer compreender o
fenômeno da guerra, mas também, ao eliminar a mitificação
do passado, mostrar a grandeza e o horror do presente.
A obsessão pela verdade no
relato do que é contemporâneo
(o nascimento de um novo mito jornalístico), embora fruto
de uma cruzada da razão contra o mito, revela uma nova e
inesperada forma da tragédia: a
impossibilidade de agarrar o
presente (por mais imediato
que seja o relato, ele será sempre história) e a substituição da
ilusão segura de um passado
mítico pela esperança num futuro incerto.
Avaliação:
Livro: História da Guerra do
Peloponeso - Livro 1
Autor: Tucídides
Tradução: Anna Lia Amaral de
Almeida Prado
Lançamento: Martins Fontes
Quanto: R$ 27,50 (228 págs.)
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