São Paulo, Terça-feira, 21 de Setembro de 1999
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FOTOGRAFIA

Barcelona expõe transgressões de Rio Branco

CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha

O fotógrafo Miguel Rio Branco ganha hoje uma consistente retrospectiva de seus últimos trabalhos, organizada pela Fundação La Caixa de Barcelona, apresentando quatro instalações com imagens estampadas de luz bestial, o combustível de sua obra desde o final dos anos 70, quando criou a série fotográfica em preto-e-branco "Negativo Sujo", talvez seu primeiro conjunto de imagens em tom de denúncia social.
Hoje Rio Branco indica um caminho possível para se ascender ao universo das cores difusas, para manter uma relação afetiva com elas, mesmo que se imprimam da luz rarefeita de um pequeno quarto de bordel, de um vestiário frio de uma academia de boxe ou do corpo retalhado de uma prostituta de Salvador.
Rio Branco sempre se sentiu atraído pelo inevitável, pela violência e morte tangentes à sociedade contemporânea, hoje vista "subtraída a qualquer deterioração", como dizia o poeta mexicano Octávio Paz, referindo-se às imagens veiculadas pela publicidade e pela TV.
Há quem o chame de niilista, afinal Rio Branco trata antes de mais nada da miséria da condição humana, construiu sua obra denunciando a corrupção dos homens, como Rousseau.
"Hoje em dia meu trabalho anda menos diretamente temático. Penso, após tudo o que fiz, que não adiantava muito tentar denunciar as coisas de maneira veemente, porque tudo isso se diluía, perdia força depois."
Talvez tenha compreendido a inevitabilidade da morte, o que vale também para as imagens. Mas não fechou os olhos.
Uma rápida olhada nos trípticos ao lado, da série "Entre os Olhos, o Deserto", inédita no Brasil, poderia indicar o desprendimento atual de Rio Branco em relação ao mundo prosaico.
Está experimentando "uma certa atração pela abstração", disse à Folha, andando de um lado para outro em seu estúdio, localizado numa ladeira do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
A série foi exibida anteriormente em San Diego (EUA), em 1997. Trata-se de uma instalação em que trincas de imagens são sucessivamente projetadas numa parede. A cena central dessa instalação é sempre enigmática. Pode ser um deserto, um close de um olho que não se vê, como este do cavalo que aparece no tríptico ao lado, ou a imagem de Paul Newman mediada por uma tela de televisor.
Para ocupar as bordas desses trípticos, Rio Branco escolheu cenas mais objetivas, olhos que se reconhecem, como se nos dissesse que o mundo real, de aparências, esconde entre os olhos um palco pouco iluminado, um mistério profundo como os cânions do deserto.
O escritor norte-americano David Levi Strauss lembra, no prefácio que escreveu para o livro "Miguel Rio Branco", publicado pela Cia. das Letras no ano passado, que, segundo os antigos, entre os olhos, a glândula pineal guarda a "morada da alma, que age como uma ponte entre o mundo visível e o invisível".
O ensaio de Strauss leva o sugestivo título de "A Bela e a Fera, Bem entre os Olhos", reforçando a idéia que, apesar das aparências ou, considerando as imagens impressas nesta página, apesar do que não se vê, o trabalho de Rio Branco ressalta a ambiguidade das coisas vividas, claramente, como poderá atestar o público de Barcelona.
Seguindo esse raciocínio, as imagens que cria hoje assumem ares de universalidade. "Não deixo de ser contraditório, pois, ao mesmo tempo em que abdico da clareza para mergulhar na abstração, parece que estou me comunicando com mais pessoas", diz.
Ainda assim, admite que seu trabalho mais notório é "Out of Nowhere", apresentado pela primeira vez na Bienal de La Habana, em Cuba, no ano de 1994.
A série reúne as imagens clicadas na academia de boxe Santa Rosa, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro. Essas fotos também integram a retrospectiva que começa hoje na Catalunha.
"Foi curiosa a maneira como iniciei esse trabalho. Havia visto no jornal uma foto de um boxeador com apenas um braço. Um boxeador de um só braço é uma coisa inusitada, que não se vê todo dia. Ele treinava aqui perto de casa. Resolvi ir atrás e acabei conhecendo, naquela academia, um resumo inaudito do Brasil. Naquele lugar treinavam bandidos, policiais, traficantes, havia também putas que iam lá para tentar arrumar um programa."
A esse pequeno antro Rio Branco confiou um de seus segredos mais recônditos: "Interesso-me pelo lado poético da violência, pela eterna tensão entre a vida e a morte". É seu lado fera, revelado entre os olhos de que fala Strauss. "Isso existe, parece até que sou um pouco pessimista", completa.
E aqui não há nada de glamourização. Não se trata de uma "estética da miséria", mas da subversão de um dos paradigmas clássicos da estética, aquele lançado por Leonardo da Vinci no "Ginevra": a beleza adorna a virtude ("virtutem forma decorat").
Sobre isso, Strauss escreve: "As imagens de Rio Branco se comprazem na revelação da beleza, insistindo em que essa beleza deve ser construída". E, aqui, a beleza se constrói com a matéria em mutação, como se quisesse inventariar o que já se foi.
Por isso, os catalães vão conhecer agora uma obra poderosa, que trabalha o limite, situações dramáticas, o sexo e a transgressão, a animalidade, coisas que os homens, acreditando-se "subtraídos à deterioração", esforçam-se por esconder, mas que estão bem no meio de seus olhos.


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