São Paulo, segunda, 21 de setembro de 1998

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Salão Oval, espelho no teto, gravador no banheiro

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Quase tudo se falou, quase todas as piadas foram feitas sobre o caso Clinton-Monica Lewinsky. Poucos se detiveram na miséria sexual do homem mais poderoso do mundo, isto é, poucos mostraram como sua vida é triste, comparada com a do anônimo homem de rua.
Clinton faz amor sem tirar a gravata, coisa que qualquer mortal comum tem o direito de fazer. Clinton faz amor sem pelo menos tirar as calças, coisa que qualquer mortal comum pode fazer. Clinton faz amor preocupado com a definição de ato sexual para que possa, legalmente, escapar dela.
Como se isso não bastasse, Clinton não bloqueia o telefone, quando faz amor, nem sequer escolhe as ligações que vai receber. Portanto faz amor sem tirar a gravata e as calças, discutindo temas políticos com congressistas norte-americanos.
Que poder sobre o mundo justificaria tantas limitações? Não se trata apenas de se deixar castrar num Salão Oval, enquanto os seres comuns deitam em camas redondas com espelho no teto, sauna e piscina, como anunciam os melhores motéis.
O homem mais poderoso do mundo atrai mulheres que também gostam de poder e vêem no sexo apenas um instrumento auxiliar. Cada relação é catalogada com cuidado, cada expressão amorosa anotada com precisão, cada gota de esperma que se derrame é mantida sob rigorosas condições para que seu DNA seja revelado nos próximos 20 séculos.
O gênero "kiss and tell" coloca um problema adicional. Pessoas treinadas para narrar muitas vezes se descuidam de amar -são péssimas de cama. Clinton faz amor sem tirar a roupa, está sob constante observação de suas parceiras, e tudo indica, além de tudo, que elas são péssimas amantes.
Como assim? Tanto sacrifício para chegar ao poder, tantas noites em claro, crises, colesterol, estresse prometiam uma condição radiosa, como a de Mao Tsé-tung, que só foi denunciado depois da morte pelo médico particular. Era tarde demais para escândalo: centenas de meninos e meninas aprenderam com o pensamento e corpo de Mao lições que não estavam no livrinho vermelho.
Clinton projetou seu paraíso sexual sem levar em conta as características da democracia. Tudo que faz é documentado. Se alguém lhe pede água depois de uma corrida e ele encaminha a moça para dentro de seu gabinete, as câmeras o seguem até a porta. Quem garante que lá dentro não continuaram a ser filmados? Quem garante que a própria moça não trouxe uma minicâmera entre as pernas ou debaixo da língua, dependendo da modalidade que o presidente escolher?
Isso tudo são considerações de um não-paranóico, alguém que examine a vida de Clinton friamente. Bastaria uma pontinha de paranóia para que Clinton temesse outras armadilhas mais poderosas: um visgo que prenda as pessoas, como se fossem cachorros pós-coito, ou mesmo tintas que deixem marcas indeléveis no pênis da vítima.
Completa-se assim um quadro assustador para o homem comum: ter de fazer amor sem tirar a roupa, discutindo projetos com congressistas, sendo observado para um livro futuro e podendo, quem sabe, até perder o pênis numa manobra radical para comprometê-lo. E tudo isso com gente que não é boa de cama.
Houve um personagem de história em quadrinhos que tinha o seguinte lema: "Masturbation now". Essa é a única maneira que Clinton teria para sobreviver em paz, mas, sejamos sinceros, tantos anos de batalha política para votar às espinhas da adolescência talvez não façam bem à auto-estima do líder máximo do planeta.
Outra saída seria frequentar direitinho a igreja Batista, limitar-se a contatos com a própria mulher, papai-mamãe, posição de missionário como manda a santa Igreja. Aí seria possível se desnudar e dar uns gritinhos moderados que escapassem aos gravadores da segurança que protege sua casa. Haja tesão para fazer na única hora em que é possível aquilo que, no fundo do coração, não se quer mais.
"The Economist" disse numa capa que Clinton era rejeitado por causa das mentiras, do perjúrio e por não ter tragado. Se o planeta inteiro passou a empatar a transa de Clinton, é necessário admitir que ele também é culpado.
Políticos fingem que pensam como a maioria, frequentam igrejas, concedem entrevistas bem-comportadas, participam de cruzadas morais e, quando fumam, não tragam ou não gostam, como Clinton e Fernando Henrique. Todo mundo acredita em Deus, frequenta a igreja, proclama a fidelidade conjugal. Para se tornar poderoso é preciso descartar a sinceridade que se baseia no conhecimento das limitações humanas.
Kissinger afirma que o poder é afrodisíaco. Só resta aos líderes mundiais os lençóis da primeira-dama ou a volta ao tempo de menino, quando se compram revistas eróticas para se trancar no banheiro. Ainda assim é preciso encapá-las com cuidado, cuidar para que não haja câmeras escondidas e, como gravadores são inevitáveis, masturbar-se cantando um salmo ou o hino à bandeira, dependendo da imagem que se queira fixar na imaginação do corpo de segurança que tudo ouve nas dependências do palácio do governo.
Para quem sonha com o paraíso sexual é um resultado decepcionante. Melhor é tentar viver a verdade ou não aspirar ao poder. Resta saber se os livros de história vão reter essa lição que emana do Salão Oval. Se o detalhe escapar a eles, restam as aulas de educação sexual nas escolas, que, certamente, podem registrar uma nova combinação para acrescentar às conhecidas homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher e presidente com estagiária. Nas modalidades clássicas, as pessoas gritam: "Ai, meu amor, como você é gostoso(a)". Na nova modalidade clássica, as pessoas dirão: "Mas, caro deputado, esse projeto é fundamental para o futuro do país".



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