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Salão Oval, espelho no teto, gravador no banheiro
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Quase tudo se falou, quase
todas as piadas foram feitas sobre o caso Clinton-Monica Lewinsky. Poucos se detiveram
na miséria sexual do homem
mais poderoso do mundo, isto
é, poucos mostraram como sua
vida é triste, comparada com a
do anônimo homem de rua.
Clinton faz amor sem tirar a
gravata, coisa que qualquer
mortal comum tem o direito de
fazer. Clinton faz amor sem pelo menos tirar as calças, coisa
que qualquer mortal comum
pode fazer. Clinton faz amor
preocupado com a definição de
ato sexual para que possa, legalmente, escapar dela.
Como se isso não bastasse,
Clinton não bloqueia o telefone, quando faz amor, nem sequer escolhe as ligações que vai
receber. Portanto faz amor sem
tirar a gravata e as calças, discutindo temas políticos com
congressistas norte-americanos.
Que poder sobre o mundo
justificaria tantas limitações?
Não se trata apenas de se deixar castrar num Salão Oval,
enquanto os seres comuns deitam em camas redondas com
espelho no teto, sauna e piscina, como anunciam os melhores motéis.
O homem mais poderoso do
mundo atrai mulheres que
também gostam de poder e
vêem no sexo apenas um instrumento auxiliar. Cada relação é catalogada com cuidado,
cada expressão amorosa anotada com precisão, cada gota
de esperma que se derrame é
mantida sob rigorosas condições para que seu DNA seja revelado nos próximos 20 séculos.
O gênero "kiss and tell" coloca um problema adicional.
Pessoas treinadas para narrar
muitas vezes se descuidam de
amar -são péssimas de cama.
Clinton faz amor sem tirar a
roupa, está sob constante observação de suas parceiras, e
tudo indica, além de tudo, que
elas são péssimas amantes.
Como assim? Tanto sacrifício
para chegar ao poder, tantas
noites em claro, crises, colesterol, estresse prometiam uma
condição radiosa, como a de
Mao Tsé-tung, que só foi denunciado depois da morte pelo
médico particular. Era tarde
demais para escândalo: centenas de meninos e meninas
aprenderam com o pensamento e corpo de Mao lições que
não estavam no livrinho vermelho.
Clinton projetou seu paraíso
sexual sem levar em conta as
características da democracia.
Tudo que faz é documentado.
Se alguém lhe pede água depois de uma corrida e ele encaminha a moça para dentro de
seu gabinete, as câmeras o seguem até a porta. Quem garante que lá dentro não continuaram a ser filmados? Quem
garante que a própria moça
não trouxe uma minicâmera
entre as pernas ou debaixo da
língua, dependendo da modalidade que o presidente escolher?
Isso tudo são considerações
de um não-paranóico, alguém
que examine a vida de Clinton
friamente. Bastaria uma pontinha de paranóia para que
Clinton temesse outras armadilhas mais poderosas: um visgo que prenda as pessoas, como
se fossem cachorros pós-coito,
ou mesmo tintas que deixem
marcas indeléveis no pênis da
vítima.
Completa-se assim um quadro assustador para o homem
comum: ter de fazer amor sem
tirar a roupa, discutindo projetos com congressistas, sendo
observado para um livro futuro e podendo, quem sabe, até
perder o pênis numa manobra
radical para comprometê-lo. E
tudo isso com gente que não é
boa de cama.
Houve um personagem de
história em quadrinhos que tinha o seguinte lema: "Masturbation now". Essa é a única
maneira que Clinton teria para sobreviver em paz, mas, sejamos sinceros, tantos anos de
batalha política para votar às
espinhas da adolescência talvez não façam bem à auto-estima do líder máximo do planeta.
Outra saída seria frequentar
direitinho a igreja Batista, limitar-se a contatos com a própria mulher, papai-mamãe,
posição de missionário como
manda a santa Igreja. Aí seria
possível se desnudar e dar uns
gritinhos moderados que escapassem aos gravadores da segurança que protege sua casa.
Haja tesão para fazer na única
hora em que é possível aquilo
que, no fundo do coração, não
se quer mais.
"The Economist" disse numa
capa que Clinton era rejeitado
por causa das mentiras, do perjúrio e por não ter tragado. Se
o planeta inteiro passou a empatar a transa de Clinton, é necessário admitir que ele também é culpado.
Políticos fingem que pensam
como a maioria, frequentam
igrejas, concedem entrevistas
bem-comportadas, participam
de cruzadas morais e, quando
fumam, não tragam ou não
gostam, como Clinton e Fernando Henrique. Todo mundo
acredita em Deus, frequenta a
igreja, proclama a fidelidade
conjugal. Para se tornar poderoso é preciso descartar a sinceridade que se baseia no conhecimento das limitações humanas.
Kissinger afirma que o poder
é afrodisíaco. Só resta aos líderes mundiais os lençóis da primeira-dama ou a volta ao tempo de menino, quando se compram revistas eróticas para se
trancar no banheiro. Ainda assim é preciso encapá-las com
cuidado, cuidar para que não
haja câmeras escondidas e, como gravadores são inevitáveis,
masturbar-se cantando um
salmo ou o hino à bandeira,
dependendo da imagem que se
queira fixar na imaginação do
corpo de segurança que tudo
ouve nas dependências do palácio do governo.
Para quem sonha com o paraíso sexual é um resultado decepcionante. Melhor é tentar
viver a verdade ou não aspirar
ao poder. Resta saber se os livros de história vão reter essa
lição que emana do Salão Oval.
Se o detalhe escapar a eles, restam as aulas de educação sexual nas escolas, que, certamente, podem registrar uma
nova combinação para acrescentar às conhecidas homem
com mulher, homem com homem, mulher com mulher e
presidente com estagiária. Nas
modalidades clássicas, as pessoas gritam: "Ai, meu amor, como você é gostoso(a)". Na nova
modalidade clássica, as pessoas
dirão: "Mas, caro deputado, esse projeto é fundamental para o
futuro do país".
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