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TEATRO
Renato Cohen foi guardião da vanguarda
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Renato Cohen, que morreu
no sábado, aos 46, vítima de
infarto, se foi cedo e rápido demais, talvez para mostrar que a vida é fugaz como um happening.
Conheci Renato, como muitos
da minha geração, enquanto um
guardião atento do teatro de vanguarda. Ele fez parte do júri de
uma Jornada de Teatro Experimental do SESC, em uma das raras vezes que me arrisquei enquanto diretor, com "Dias Felizes", de Samuel Beckett (1906-1989); estava também na banca de
qualificação de meu mestrado.
Em ambas as vezes, só endossou
meu trabalho depois de um exame meticuloso, cobrando sempre
mais precisão, mais clareza, mais
embasamento.
Um "desorganizado extremamente organizado" nos termos de
seu orientador e editor Jacó
Guinsburg -em cuja editora
Perspectiva publicou ensaios e
traduções- Renato Cohen deixou uma obra teórica que demonstra com clareza o quanto o
teatro experimental, ainda visto
enquanto provocação ou espontaneidade, tem sólidas bases nos
vanguardistas russos, alemães,
americanos, e um rígido processo
de criação e registro.
Em "Performance como Linguagem", originalmente sua dissertação de mestrado, expõe os
métodos ainda pouco assimilados
no Brasil de Joseph Beuys, Laurie
Anderson e o grupo Fluxus, entre
outros. O seu doutorado rendeu
"Work in Progress na Cena Contemporânea", no qual o conceito
wagneriano de "Gesamtkunstwerk" -a "obra de arte total" que
tanto norteou a obra de Gerald
Thomas e José Celso Martinez
Correa- é analisado com profundidade.
Seu lado rigoroso, acadêmico,
não tolhia, como é costume se
pensar, sua paixão criativa. Junto
a seu grupo Ka, Renato Cohen fez
espetáculos marcantes, baseando-se em Magritte ou na poética
Zaum de Vélimir Khlébnikov.
Constituiu também, junto a
usuários de serviço de saúde
mental, a Companhia Teatral
Ueinzz, no qual o espírito criativo
e a organização cênica não faziam
nenhum tipo de concessão às
eventuais limitações dos performers.
Foi em um espetáculo da Ueinzz
que tive a única oportunidade de
fazer uma crítica de seu trabalho.
Em "Gotham SP", sem nenhum
paternalismo nem exposição vexatória, cada um expunha sua
utopia, em pequenos solos que os
elevava bem além do estigma cotidiano da doença mental.
Apenas um deles me pareceu
estar se expondo demais em sua
fragilidade. Enfaixado como uma
múmia, proferia um discurso em
voz trêmula, exaltado, inseguro.
Durante o espetáculo, me pareceu
necessário fazer o reparo a Renato. Mas nos agradecimentos, a
"múmia" revelou o rosto sorridente do próprio diretor, em sua
enorme ousadia de tímido.
Sua paixão pelo teatro, que o fez
abandonar uma bem-sucedida
carreira de engenheiro, era total.
Em nome do risco inerente ao teatro experimental, não permitia
que se dispersasse em busca de
patrocínio ou marketing pessoal.
Talvez por isso a importância de
sua obra não tenha ficado clara
para o grande público, mas seu
prestígio junto a grandes criadores sempre se manteve constante,
habilitando-o por sua vez a influenciar toda uma geração.
Cedo demais se foi Renato Cohen. Mas os discípulos que deixou
na PUC e na Unicamp, assim como todos aqueles que puderam se
beneficiar de seu contato, guardaram uma marca profunda de seu
rigor e de sua paixão. Muito do
que se verá de desnorteante e fecundo no teatro das próximas décadas terá essa marca.
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