São Paulo, quarta, 21 de outubro de 1998

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Ele (a) - Ela (e)

Reprodução
Billy (terceiro da esq. para dir.) e amigos posam com Duke Ellington (segundo a partir da esq.), em 54



É lançada nos EUA a biografia do jazzista Billy Tipton, que por 50 anos manteve um segredo: era mulher


ERIKA SALLUM
da Reportagem Local

William Tipton quase não acreditou no que ouviu do enfermeiro encarregado de examinar o cadáver de seu pai: "Tem certeza de que não é sua mãe?". Foi nessa manhã de 1989 que ele descobriu o inacreditável: seu pai adotivo era mulher.
Resumindo: Billy -batizado(a) Dorothy Lucille Tipton- era jazzista, casou quatro vezes, adotou três crianças, e nem mulheres ou filhos jamais desconfiaram que ele, na verdade, era ela. Foram mais de 50 anos sustendo a mentira.
Após ser capa de jornais sensacionalistas, Tipton agora é tema de um livro, "Suits Me: The Double Life of Billy Tipton", de Diane Wood Middlebrook, professora da Universidade de Stanford. A obra foi lançada recentemente nos EUA e deve ser publicada em dezembro no Reino Unido.
Recheada de fotos que mostram passo a passo a transformação de Dorothy em Billy, "Suits Me" traça o perfil da garota do interior, nascida em 1914 em Spokane (Washington), que adorava jazz -um meio essencialmente masculino naquele tempo.
Com documentos, fotos e entrevistas, a autora tenta explicar por que Dorothy, a partir dos 19 anos, passou a se vestir de homem em tempo integral. Principalmente à noite, quando tocava, de terno e gravata, em clubes locais.
"Suits Me" também se atém à vida particular de Billy, exposta em longas entrevistas com as ex-mulheres do artista. "Eu cheguei até a pensar que estava grávida de Billy -isso mostra como eu era ignorante no assunto", afirmou Betty Cox, segunda mulher do músico.
Para justificar por que não se despia na frente de ninguém, Billy dizia que um acidente havia deformado seu corpo, o que o obrigava a andar com ataduras no peito.
Leia abaixo trechos da entrevista que Diane Wood Middlebrook deu à Folha há algumas semanas.

Folha - No livro, você defende a tese de que Dorothy Tipton acabou se tornando Billy por causa do jazz... Só por causa dele?
Diane Wood Middlebrook -
Penso em Billy como um artista, uma pessoa para quem o trabalho era a principal atividade. Entreter o público era o mais importante para ele. Todo o resto era criado para sustentar isso. O que fez sua vida valer a pena foi o mesmo que fez a vida da poeta Anne Sexton (sobre quem a escritora publicou uma biografia) valer a pena: trabalhar como artista no meio de artistas.
Folha - Quem teve a idéia de fazer um livro sobre a vida de Billy Tipton foi sua última mulher, Kitty, que acabou lhe propondo o convite. Por que você o aceitou?
Middlebrook -
Biógrafos são, provavelmente, voyeurs no sentido que Freud atribuía a todos os intelectuais: são detentores de uma produtiva posição de defesa em relação ao mundo. O que mantém os biógrafos ativos é o desejo de um conhecimento completo o bastante para narrar uma vida.
Folha - Qual foi sua maior dificuldade para escrever o livro?
Middlebrook -
Encontrar pessoas, muitas já bastante idosas. As dificuldades desse projeto tinham dimensões múltiplas, mas um dos grandes aspectos foi o desafio para mim como biógrafa: eu queria ver se eu era ou não capaz de trabalhar como uma jornalista investigativa, mais do que uma acadêmica pesquisando em arquivos.
Folha - No livro, você descreve uma série de piadas que Billy fazia no palco e que insinuavam que havia algo de errado com sua masculinidade. Isso não era perigoso?
Middlebrook -
Billy trabalhava numa tradição de vaudeville, em que esse tipo de brincadeira fazia parte do entretenimento. Se você pensar no Billy como, acima de tudo, um "entertainer", muitas coisas começam a fazer sentido.
Folha - Por que Billy Tipton não revelou sua "verdadeira identidade" quando se mudou para Joplin, uma cidade, segundo o livro, mais aberta aos gays e lésbicas?
Middlebrook -
"Aberta" possui sentidos muito relativos. É preciso considerar uma questão aqui: o que, no fim das contas, Billy ganharia se assumindo? Na minha opinião, não muita coisa.
Sobre o termo "verdadeira identidade", sempre penso em Billy como alguém que tinha desejos por mulheres e que era capaz de satisfazer os desejos delas por meio de um disfarce. Isso não o transforma em uma lésbica no sentido que conhecemos hoje, para se referir a uma identidade social focada na preferência sexual.
Folha - Como foi entrevistar as ex-mulheres de Billy e seus filhos?
Middlebrook -
Acho que não seria profissional falar sobre pessoas ainda vivas separadamente do que eu escrevei sobre elas no meu livro. Elas foram generosas comigo, é tudo o que posso dizer.



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