São Paulo, terça-feira, 21 de novembro de 2000

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MÚSICA/LANÇAMENTOS
Noel na íntegra


Caixa de 14 CDs pretende agrupar as primeiras gravações de todas as canções compostas pelo autor carioca em seus 26 anos de vid


a PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

A tarefa era hercúlea: durante 13 anos, o professor de biologia Omar Jubran, 47, recolheu o que pretendia que fosse a obra completa do compositor carioca Noel Rosa (1910-37), detendo-se à primeira gravação de cada canção. De início, era obsessão de colecionador apaixonado, e ele nem cogitava um dia embalar seu inventário em formato comercial.
Mas, 13 anos mais tarde, chega às lojas, pela gravadora independente Velas, "Noel pela Primeira Vez", uma caixa com 14 CDs, 229 faixas (mais uma em homenagem a Noel, por Johnny Alf) e um livreto de 160 páginas.
Desde quando passou a pensar em transformar sua coleção em produto, Jubran procurou várias grandes gravadoras, ouvindo sempre a mesma resposta: não.
Em se tratando de um dos maiores autores de todos os tempos, ficava evidente mais uma vez que a palavra "cultura" parece ter deixado de vez de frequentar as pautas das grandes gravadoras do Brasil. A Velas, por sua vez, só pôde viabilizar o projeto ambicioso com o apoio estatal da Funarte.
"Noel pela Primeira Vez" traz 229 faixas compostas pelo autor, mas não 229 canções. É que várias delas são incluídas mais de uma vez, seja porque haviam sofrido variações de letra, seja porque só haviam sido registradas em gravações particulares e só depois (muitas vezes após a morte do autor) tiveram registro comercial.
O histórico de Noel é apresentado em ordem cronológica de gravação -e não de composição. Do 11º CD em diante começam a aparecer as numerosas canções que ele deixou inéditas ao morrer precocemente, devido à tuberculose.
A caixa deixa evidenciar, nas muitas notas de rodapé, a condição precária da autoria à época de Noel -incluem-se dezenas de canções que não o traziam como parceiro no registro inicial, mas o faziam na partitura ou vieram a ser atribuídas a ele depois por biógrafos ou pelos parceiros.
Dessas, destacam-se várias confusões na parceria com Ismael Silva e Francisco Alves, este passado à história como costumeiro comprador de composições alheias. Naquela época era assim.
Além de operar trabalho inédito na MPB -o agrupamento de toda a criação de um artista-, "Noel pela Primeira Vez" dá farto material para entender um dos primeiros grandes compositores populares brasileiros e, por consequência, o tempo em que ele viveu, da primeira era Vargas e do início da indústria fonográfica.
Noel começa a revelar sua pena em 1928, quando pula rapidamente de uma primeira valsa parnasiana ("Ingênua") a temas galhofeiros em que predomina o linguajar acaipirado, de contato direto com um Brasil populista.
Nascia logo de início sua veia satírica, que com o passar dos anos encontraria em Almirante (originalmente seu companheiro no Bando dos Tangarás) o intérprete mais constante.
É só em 1931 que o popularíssimo Francisco Alves passa a dar status extra a Noel, tornando-se veiculador constante de suas canções e pretensas parcerias. Mário Reis segue o colega de perto (aliás, são vários os duetos entre os dois, em prática comum dos grandes canários do início do século). Silvio Caldas fica mais atrás, e Carmen Miranda se mostra intérprete menos que esporádica de Noel.
As muitas letras de conteúdo social ("O Orvalho Vem Caindo", "Sem Tostão", "Onde Está a Honestidade?" etc.) são acompanhadas por temas líricos cada vez mais frequentes, quase sempre no registro de fossa avassaladora.
O mosaico se faz de notáveis facetas: o malandro modernista ("Gosto, mas Não É Muito", "Conversa de Botequim"), o marginalizado abandonado ("Gago Apaixonado"), o machista ("Mentiras de Mulher", "Ando Cismado"), o francamente misógino ("Mulher Indigesta", "Com Mulher Não Quero Mais Nada").
Revela-se um obsessivo com o tema "mentira". Dedica a tal prática várias farpas ("Pra Que Mentir", "Tudo Que Você Diz", "Ando Cismado"), mas cai no paradoxo de louvá-la como inevitável, em "Mentir (Mentira Necessária)". Alguma mulher ("mentirosa") é sempre condenada; o narrador, ali e aqui, é absolvido.
Exprimindo misoginia talvez de época, não deixou de conquistar nessa fase as duas grandes intérpretes femininas de sua vida. Não por acaso rivais entre si, Aracy de Almeida e Marília Baptista dominam, soberbas, sua produção pós-1935. Mas a partir daí, a reboque da doença, a produção de Noel se entristece e se desacelera.
O trem passou depressa demais, e a história está mais uma vez contada. Enquanto isso, Omar Jubran avisa que já sonha em repetir o feito com Ary Barroso, Lamartine Babo e Adoniran Barbosa. As grandes gravadoras? Devem se fingir de mortas outra vez.


Noel pela Primeira Vez
     Lançamento: Velas Quanto: R$ 280 (caixa com 14 CDs)




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