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MÚSICA/LANÇAMENTOS
Noel na íntegra
Caixa de 14 CDs pretende agrupar as primeiras gravações de todas as canções compostas pelo autor carioca em seus 26 anos de vid
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a
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
A tarefa era hercúlea: durante 13 anos, o professor de
biologia Omar Jubran, 47, recolheu o que pretendia que fosse a
obra completa do compositor carioca Noel Rosa (1910-37), detendo-se à primeira gravação de cada
canção. De início, era obsessão de
colecionador apaixonado, e ele
nem cogitava um dia embalar seu
inventário em formato comercial.
Mas, 13 anos mais tarde, chega
às lojas, pela gravadora independente Velas, "Noel pela Primeira
Vez", uma caixa com 14 CDs, 229
faixas (mais uma em homenagem
a Noel, por Johnny Alf) e um livreto de 160 páginas.
Desde quando passou a pensar
em transformar sua coleção em
produto, Jubran procurou várias
grandes gravadoras, ouvindo
sempre a mesma resposta: não.
Em se tratando de um dos
maiores autores de todos os tempos, ficava evidente mais uma vez
que a palavra "cultura" parece ter
deixado de vez de frequentar as
pautas das grandes gravadoras do
Brasil. A Velas, por sua vez, só pôde viabilizar o projeto ambicioso
com o apoio estatal da Funarte.
"Noel pela Primeira Vez" traz
229 faixas compostas pelo autor,
mas não 229 canções. É que várias
delas são incluídas mais de uma
vez, seja porque haviam sofrido
variações de letra, seja porque só
haviam sido registradas em gravações particulares e só depois
(muitas vezes após a morte do autor) tiveram registro comercial.
O histórico de Noel é apresentado em ordem cronológica de gravação -e não de composição. Do
11º CD em diante começam a aparecer as numerosas canções que
ele deixou inéditas ao morrer precocemente, devido à tuberculose.
A caixa deixa evidenciar, nas
muitas notas de rodapé, a condição precária da autoria à época de
Noel -incluem-se dezenas de
canções que não o traziam como
parceiro no registro inicial, mas o
faziam na partitura ou vieram a
ser atribuídas a ele depois por biógrafos ou pelos parceiros.
Dessas, destacam-se várias confusões na parceria com Ismael Silva e Francisco Alves, este passado
à história como costumeiro comprador de composições alheias.
Naquela época era assim.
Além de operar trabalho inédito
na MPB -o agrupamento de toda a criação de um artista-,
"Noel pela Primeira Vez" dá farto
material para entender um dos
primeiros grandes compositores
populares brasileiros e, por consequência, o tempo em que ele viveu, da primeira era Vargas e do
início da indústria fonográfica.
Noel começa a revelar sua pena
em 1928, quando pula rapidamente de uma primeira valsa parnasiana ("Ingênua") a temas galhofeiros em que predomina o linguajar acaipirado, de contato direto com um Brasil populista.
Nascia logo de início sua veia satírica, que com o passar dos anos
encontraria em Almirante (originalmente seu companheiro no
Bando dos Tangarás) o intérprete
mais constante.
É só em 1931 que o popularíssimo Francisco Alves passa a dar
status extra a Noel, tornando-se
veiculador constante de suas canções e pretensas parcerias. Mário
Reis segue o colega de perto (aliás,
são vários os duetos entre os dois,
em prática comum dos grandes
canários do início do século). Silvio Caldas fica mais atrás, e Carmen Miranda se mostra intérprete menos que esporádica de Noel.
As muitas letras de conteúdo
social ("O Orvalho Vem Caindo",
"Sem Tostão", "Onde Está a Honestidade?" etc.) são acompanhadas por temas líricos cada vez
mais frequentes, quase sempre no
registro de fossa avassaladora.
O mosaico se faz de notáveis facetas: o malandro modernista
("Gosto, mas Não É Muito",
"Conversa de Botequim"), o marginalizado abandonado ("Gago
Apaixonado"), o machista
("Mentiras de Mulher", "Ando
Cismado"), o francamente misógino ("Mulher Indigesta", "Com
Mulher Não Quero Mais Nada").
Revela-se um obsessivo com o
tema "mentira". Dedica a tal prática várias farpas ("Pra Que Mentir", "Tudo Que Você Diz", "Ando
Cismado"), mas cai no paradoxo
de louvá-la como inevitável, em
"Mentir (Mentira Necessária)".
Alguma mulher ("mentirosa") é
sempre condenada; o narrador,
ali e aqui, é absolvido.
Exprimindo misoginia talvez de
época, não deixou de conquistar
nessa fase as duas grandes intérpretes femininas de sua vida. Não
por acaso rivais entre si, Aracy de
Almeida e Marília Baptista dominam, soberbas, sua produção
pós-1935. Mas a partir daí, a reboque da doença, a produção de
Noel se entristece e se desacelera.
O trem passou depressa demais,
e a história está mais uma vez
contada. Enquanto isso, Omar Jubran avisa que já sonha em repetir
o feito com Ary Barroso, Lamartine Babo e Adoniran Barbosa. As
grandes gravadoras? Devem se
fingir de mortas outra vez.
Noel pela Primeira Vez
Lançamento: Velas
Quanto: R$ 280 (caixa com 14 CDs)
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