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São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 2003

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"Fanny e Alexander", inspirado na infância do diretor, aborda dois irmãos que passam por mudanças

Bergman transita entre o real e o imaginário

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Filme-testamento de Ingmar Bergman, "Fanny e Alexander", outra obra-prima que a Estação Botafogo está relançando esta semana, tem, muitas vezes, o clima celebrativo de uma montagem teatral bem-sucedida que é apresentada, pela última vez, a uma platéia de iniciados sempre pronta a aplaudir as grandes cenas e ávida por chamar ao palco, ao final, o autor.
Concebido no outono de 1978, (quando Bergman, alvo de um processo da receita federal sueca, era só "miséria e trevas", segundo suas próprias palavras) e escrito na primavera de 1979 (quando, já isento do processo e dissipada a angústia, ele se sentia mais livre do que nunca), o filme explora, sem se deixar prender nos meandros, o maior manancial do universo bergmaniano, o mundo de sua infância, origem de quase todos os seus temas.
A cortina de um teatro em miniatura se abre e vemos o rosto de uma criança, Alexander (Bertil Guve), o jovem alter-ego do diretor. Bergman, que sempre viu a originalidade primeira e a qualidade distinta do cinema na possibilidade de se aproximar do rosto humano, ele que se resumiu cada vez mais, em seus filmes, à nudez do rosto e ao que nela pode haver de niilista e fantasmagórico, acaba por encontrar no rosto lívido de uma criança a síntese de sua obra.
Alexander e sua irmã Fanny (inspirada em Margaretta, a caçula que ajudou Bergman a construir seu primeiro teatro de marionetes) são subtraídos da saudável domesticidade vitoriana de sua família materna e submetidos à severa educação religiosa do padrasto (o pai-tornado-padrasto de Bergman), um pastor luterano. Alexander, no entanto, já havia encontrado o seu deus: o ator e marionetista interpretado por Mats Bergman, que se declara deus antes de surgir, para alívio do assustado Alexander, atrás da porta. O susto equivale ali a uma revelação: como se o pequeno Bergman descobrisse naquele momento, no ilusionismo da arte, um antídoto contra as ilusões religiosas.
Em "Fanny e Alexander", Bergman enfrenta seus fantasmas de frente. Ele precisou realizar mais de 40 filmes antes de conseguir fazê-lo com certo desprendimento, sem medo ou culpa. Em seu livro de memórias, "A Lanterna Mágica", ele nos diz que, apesar de todas as proibições e regras incompreensíveis a que era submetido, sua infância foi repleta de cenários inesperados e instantes mágicos, de luzes, pessoas e aromas. Eis uma bela sinopse para "Fanny e Alexander".
Alexander, tal como o pequeno Bergman de "A Lanterna Mágica", vive entre uma alegria ilimitada e um medo desmesurado, sempre em trânsito entre o real e o imaginário, sempre se esforçando para "manter a realidade dentro de seus limites". Nesse sentido, seu verdadeiro batismo se dá quando a avó materna lhe lê um trecho de "O Sonho", de Strindberg: "Tudo pode acontecer, tudo é possível e provável. O tempo e o espaço não existem. Sobre um ligeiro fundo de realidade, a imaginação tece sua teia e cria novos desenhos... novos destinos".


Fanny e Alexander    
Produção: Suécia/Alemanha/França, 1982
Direção: Ingmar Bergman
Com: Pernilla Allwin e Bertil Guve
Quando: a partir de hoje no Top Cine 1



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