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São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 2003

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"PRÊT-À-PORTER"/CRÍTICA

Filha de Gilberto Gil estréia fazendo provocações durante show no DirecTV Music Hall

Falsa loira e falsa fútil, Preta Gil treme em palco paulista

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Tremendo feito vara verde, Preta Gil subiu pela primeira vez como protagonista num grande palco paulistano, o do DirecTV Music Hall, anteontem.
Antes, uma enorme fila se formava à entrada -mas era no guichê "VIP" dos "convidados especiais", não do público (esse não apareceu). Todo mundo sabe que aquela estréia tão chique e pomposa só acontecia porque ela é herdeira do poderio tropicalista, rebento de Gilberto Gil, filha do ministro da Cultura.
Atirada aos leões, Preta pulava etapas tropeçando nas barreiras e estreava, ainda semi-amadora, numa casa de porte e profissionalismo grandes demais para ela. Nem Maria Rita, sua antípoda genética e musical, ousou tal afobação, tal equívoco.
Mas, por incrível que pareça, a coisa funcionou, mesmo com os botões de equalização todos desajustados. Preta canta tudo (e tudo vai de João Donato a Os Morenos - "marrom bombom, marrom bombom") de modo monocórdico, com voz de patricinha. Mas tem vozeirão e não se envergonha nada de cantar. Canta e acaba encantando, mesmo toda errada.
Já começou se rebelando contra a patrulha que sofre porque se assumiu mulher, preta, gorda, pelada e desbocada. Cantou "todos acham que falo demais", de costas, tal qual Angela Ro Ro fazia e faria pelo bolerão de Tom Jobim.
"Sofro de censura, sabe?", fez piada, nervosíssima. Brincava, mas falava sério. Pai Gilberto andou pedindo que ela emagrecesse antes de ficar nua, tio Caetano não achou as fotos tão bonitas assim, o Brasil moralista caiu de raquetada por sobre sua fofa nudez.
Ávida de rebeldia, chorou pela "mulher que a gente ama" no soul do gordão Tim Maia "Me Dê Motivo". Era indício para uma sessão abertamente lésbica, com "Namoradinha de um Amigo Meu" (de Roberto Carlos, mas toda vertida para o feminino), "Qual É, Baiana?" (de Caetano), "Eu me Rendo" (de Fábio Jr., "onde é que foi parar aquela menina/ que me esquentava quase toda noite?").
"Vamos parar de falar de mulher, vão pensar que sou obcecada", disparou. Mulher, negra, gorda, desbocada, bissexual -Preta bole sem parar com o preconceito. Os cabelos amarelos escorridos davam a pista: além de falsa lisa e falsa loira, Preta é falsa fútil. Apesar da fachada tipo Kelly Key, Sandy e axé, só fala de temas importantes, o tempo todo.
Explicou que o (inteligentíssimo) cenário de plástico, assinado por ela, era imitado. "Não é assim que todos fazem?", perguntou, de novo fazendo lembrar Maria Rita, no contrapé. Contou que quando era pequena chegou a achar que não era filha de seus pais. Disse-se preta, índia, branca, amarela.
"Tudo truque", entregou, após perguntar se era hora de enrolar para dar tempo de os músicos trocarem instrumentos. Tudo truque. É a nossa Britney, a nossa Pink, a nossa Peaches, a nossa Miss Kittin, a nossa Kelly Osbourne. A nossa Leila Diniz.
Filiava-se assim ao desmonte do ilusionismo nacional, já operado por Gilberto Braga em "Celebridade", por Guel Arraes em "Cena Aberta".
Apesar de pertencer alegremente a um esquema viciado, parecia de extrema esquerda ao cantar absurdos e falar bobagens.
Estava nua o tempo todo, e a contradição também era falsa. A inteligência recobre mesmo os frutos tropicalistas que se temem (ou se fingem de) tolos.
Sob forte impulso de vida, diluiu o axé chique do álbum de estréia num inventário da canção brasileira da geração de seus pais: Donato, Caetano, Gonzaguinha, Sullivan & Massadas, Hyldon, Gil ("Palco"), Maria Bethânia, Fábio Jr. Deu liga? Não? Pois é. Deu, sim.
Com a Rita Lee de "Saúde" e a Baby Consuelo de "Ele Mexe Comigo", conseguiu os melhores momentos de identidade sexual e musical, de entrosamento de banda. Com "Marrom Bombom" e "Me Dê Motivo", uniu tropicália com samba e com soul, waal.
Como é novinha e estava nervosa demais, leva só dez mangos por ora. Mas, aviso aos navegantes, moça Preta é figura interessantíssima para o Brasil de 2004.


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