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CARLOS HEITOR CONY
Ary Barroso: tentativa de resumo
Dizem, foi o acaso que fez o
almirante português, ao
desviar-se das calmarias das costas africanas, dar com os costados
e as naus assinaladas em terras
que pareceram primeiramente
ilha, depois sede do Clube de Regatas Vasco da Gama. Os eruditos afirmam que os habitantes
dessa ilha viviam em estado de
barbárie e, para civilizá-los, chegaram mais portugueses.
E enquanto a civilização não vinha, o português descobriu que o
índio era astuto demais, não queria nada com o trabalho. Como o
português também não quisesse
nada com o próprio, apelaram
para a ignorância: foram buscar
na África os bons crioulos que
não berravam nem mugiam, mas
eram carne de canga e açoite, para o que desse e viesse.
Disso tudo resultou aquilo que
um sujeito bem-intencionado
chamaria de flor amorosa de três
raças tristes: o caldeamento de
epidermes e pânicos, de gritos e
cânticos. O português entrava
com sua parte civilizada em termos, uma variante européia, com
heranças mediterrâneas, seu canto já não era puro, trazia acordes
e melodias árabes, profanações
provençais, referências pré-medievais. Já a chamada parte inculta entrava com o elemento
mais puro: o atabaque, o surdo,
os instrumentos que imitavam
vozes porque as vozes imitavam
instrumentos. Dessa mistura de
vozes e cantos, o samba estava
longe.
Difícil catalogar tudo o que essa
geléia, esse caldo de ritmos foi e
seria: conga, maxixe, maracatu,
frevo, coco, jongo, tango, valsa,
toada, xiste, modinha, chorinho.
Volta e meia, franceses e holandeses davam com seus apetites em
cima da imensa e desguarnecida
costa que se abria para o Atlântico, deixavam marcas que iam dos
meninos de olhos azuis a instrumentos musicais complicados,
que precisavam de uma junta de
bois para transportá-los. Um general nascido na Córsega enxotou
a corajosa corte portuguesa da
metrópole, e o Rio ganhou cortesões, sábios de diversas procedências e artistas. Um desses, que se
passava por discípulo de Haydn,
era um maestro chamado Marcos
Portugal. Quase estragou o gênio
nativo de um negro que aqui vivia, chamado José Mauricio Nunes Garcia: a mistura de tantas
raças começava a dar resultados e
faiscava o gênio. O Brasil tinha
música brasileira.
Mas o próprio Brasil ainda não
era brasileiro. A música popular
abria um flanco enorme, do tamanho do território físico que
ocupava, de difíceis contornos, e
não conseguia produzir sua expressão universal no sentido de
ser "una apta multa", uma aplicada a muitas. Ernesto Nazareth
compunha tangos e maxixes;
Eduardo Souto, amante de Chopin e do piano, fazia valsas. Chiquinha Gonzaga padronizava a
marchinha. Um cearense de talento abria o pentagrama e fazia
um batuque gostoso e clássico.
Nome: Alberto Nepomuceno. Um
campinense de gênio, desesperado por encontrar raízes próprias,
foi para a Itália e emplacou suas
óperas no Scala de Milão.
A procura persistia. Todos tinham talento, todos faziam mais
ou menos a mesma coisa, mas foi
preciso que Mauro de Almeida e,
em parte, Ernesto dos Santos, vulgo "Donga", fizessem um negócio
e escrevessem por baixo: "samba".
Historicamente, estava encontrada a palavra que designaria a
coisa. Mas a coisa não estava devidamente estruturada. Recebera
um nome, mas não recebera, ainda, o polimento, não realizara integralmente o ciclo através do
qual a arte sai do povo e volta para o povo.
Herdeiro direto de Nazareth,
com a mesma noção musical advinda do piano generoso, brilhante e sincopado de Sinhô, bebendo
tudo do velho regional, flauta,
pandeiro, cavaquinho e violão
-Anacleto Medeiros, Calado,
turma do Bando dos Tangarás,
Henrique Vogeler, Eduardo das
Neves-, o rapaz formado em direito, que pensava em ser promotor em alguma cidade perdida
por aí, pianista de alguma escola,
faria o texto final de todos aqueles pedaços que boiavam, como
pedaços de porco numa gigantesca feijoada; boiavam no cancioneiro popular, nos morros da cidade, nas salas de visita da classe
média onde havia um tapete com
um fauno ou um pavão, uma escarradeira e um piano de armário; fazia a trilha sonora das mães
pretas do serrado (a sá-dona caminhando, pelos salões arrastando o seu vestido rendado), dos terreiros do candomblé e das festas
da sociedade emergente que absorvia a produção musical do exterior, que nos chegava já escriturada em partituras e mecanizada
em rombudos discos, grossos como bolachas escuras.
Esse rapaz magro, de óculos,
rosto triangular como o dos nordestinos do sertão, mas mineiro
de Ubá, seria o ponto de união de
dois triângulos unidos pelo vértice. Percorreria todos os caminhos
e atalhos de nossa música popular, até modinhas à portuguesa
fez, como "Canta, Maria", paródias internacionais, como "Eu
Gosto do Samba", e obras-primas
de sonoridade, como "Na Batucada da Vida", que Tom Jobim considerava a melhor música brasileira de todos os tempos.
Podem perguntar por que não
citei a "Aquarela do Brasil". Muito simples: ela está longe de ser o
melhor de Ary, como a "Bachiana
nš 5" não é a melhor obra de Villa-Lobos. Mas tanto a "Aquarela" como a quinta "Bachiana" fariam a música do Brasil ganhar o
mundo e, mais importante do que
ganhar o mundo, encontrar-se
em si mesma, grande, autêntica,
poderosa e fértil.
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