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São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Ary Barroso: tentativa de resumo

Dizem, foi o acaso que fez o almirante português, ao desviar-se das calmarias das costas africanas, dar com os costados e as naus assinaladas em terras que pareceram primeiramente ilha, depois sede do Clube de Regatas Vasco da Gama. Os eruditos afirmam que os habitantes dessa ilha viviam em estado de barbárie e, para civilizá-los, chegaram mais portugueses.
E enquanto a civilização não vinha, o português descobriu que o índio era astuto demais, não queria nada com o trabalho. Como o português também não quisesse nada com o próprio, apelaram para a ignorância: foram buscar na África os bons crioulos que não berravam nem mugiam, mas eram carne de canga e açoite, para o que desse e viesse.
Disso tudo resultou aquilo que um sujeito bem-intencionado chamaria de flor amorosa de três raças tristes: o caldeamento de epidermes e pânicos, de gritos e cânticos. O português entrava com sua parte civilizada em termos, uma variante européia, com heranças mediterrâneas, seu canto já não era puro, trazia acordes e melodias árabes, profanações provençais, referências pré-medievais. Já a chamada parte inculta entrava com o elemento mais puro: o atabaque, o surdo, os instrumentos que imitavam vozes porque as vozes imitavam instrumentos. Dessa mistura de vozes e cantos, o samba estava longe.
Difícil catalogar tudo o que essa geléia, esse caldo de ritmos foi e seria: conga, maxixe, maracatu, frevo, coco, jongo, tango, valsa, toada, xiste, modinha, chorinho. Volta e meia, franceses e holandeses davam com seus apetites em cima da imensa e desguarnecida costa que se abria para o Atlântico, deixavam marcas que iam dos meninos de olhos azuis a instrumentos musicais complicados, que precisavam de uma junta de bois para transportá-los. Um general nascido na Córsega enxotou a corajosa corte portuguesa da metrópole, e o Rio ganhou cortesões, sábios de diversas procedências e artistas. Um desses, que se passava por discípulo de Haydn, era um maestro chamado Marcos Portugal. Quase estragou o gênio nativo de um negro que aqui vivia, chamado José Mauricio Nunes Garcia: a mistura de tantas raças começava a dar resultados e faiscava o gênio. O Brasil tinha música brasileira.
Mas o próprio Brasil ainda não era brasileiro. A música popular abria um flanco enorme, do tamanho do território físico que ocupava, de difíceis contornos, e não conseguia produzir sua expressão universal no sentido de ser "una apta multa", uma aplicada a muitas. Ernesto Nazareth compunha tangos e maxixes; Eduardo Souto, amante de Chopin e do piano, fazia valsas. Chiquinha Gonzaga padronizava a marchinha. Um cearense de talento abria o pentagrama e fazia um batuque gostoso e clássico. Nome: Alberto Nepomuceno. Um campinense de gênio, desesperado por encontrar raízes próprias, foi para a Itália e emplacou suas óperas no Scala de Milão.
A procura persistia. Todos tinham talento, todos faziam mais ou menos a mesma coisa, mas foi preciso que Mauro de Almeida e, em parte, Ernesto dos Santos, vulgo "Donga", fizessem um negócio e escrevessem por baixo: "samba".
Historicamente, estava encontrada a palavra que designaria a coisa. Mas a coisa não estava devidamente estruturada. Recebera um nome, mas não recebera, ainda, o polimento, não realizara integralmente o ciclo através do qual a arte sai do povo e volta para o povo.
Herdeiro direto de Nazareth, com a mesma noção musical advinda do piano generoso, brilhante e sincopado de Sinhô, bebendo tudo do velho regional, flauta, pandeiro, cavaquinho e violão -Anacleto Medeiros, Calado, turma do Bando dos Tangarás, Henrique Vogeler, Eduardo das Neves-, o rapaz formado em direito, que pensava em ser promotor em alguma cidade perdida por aí, pianista de alguma escola, faria o texto final de todos aqueles pedaços que boiavam, como pedaços de porco numa gigantesca feijoada; boiavam no cancioneiro popular, nos morros da cidade, nas salas de visita da classe média onde havia um tapete com um fauno ou um pavão, uma escarradeira e um piano de armário; fazia a trilha sonora das mães pretas do serrado (a sá-dona caminhando, pelos salões arrastando o seu vestido rendado), dos terreiros do candomblé e das festas da sociedade emergente que absorvia a produção musical do exterior, que nos chegava já escriturada em partituras e mecanizada em rombudos discos, grossos como bolachas escuras.
Esse rapaz magro, de óculos, rosto triangular como o dos nordestinos do sertão, mas mineiro de Ubá, seria o ponto de união de dois triângulos unidos pelo vértice. Percorreria todos os caminhos e atalhos de nossa música popular, até modinhas à portuguesa fez, como "Canta, Maria", paródias internacionais, como "Eu Gosto do Samba", e obras-primas de sonoridade, como "Na Batucada da Vida", que Tom Jobim considerava a melhor música brasileira de todos os tempos.
Podem perguntar por que não citei a "Aquarela do Brasil". Muito simples: ela está longe de ser o melhor de Ary, como a "Bachiana nš 5" não é a melhor obra de Villa-Lobos. Mas tanto a "Aquarela" como a quinta "Bachiana" fariam a música do Brasil ganhar o mundo e, mais importante do que ganhar o mundo, encontrar-se em si mesma, grande, autêntica, poderosa e fértil.


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