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"VIDAS DO CARANDIRU"
Instantâneos expõem o sistema prisional brasileiro
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS
"Vidas do Carandiru", de
Humberto Rodrigues, é
um livro que merece ser lido por
todos aqueles que se interessam
pelo problema das cadeias e da
aplicação do direito penal no Brasil. Rodrigues escreve com conhecimento de causa. Condenado
por um roubo de obras de arte, ficou preso por 514 dias, até ser absolvido por instância superior em
outubro do ano passado. As histórias, as "vidas", que reuniu e relata são absorventes no conteúdo
e impressionantes na narrativa.
Entre as mais curiosas está a do
próprio autor, que se estende pela
primeira parte da obra. Um executivo que ocupou altas posições
em grandes empresas de comunicação um dia abandona o emprego. Até aí, nada de extraordinário.
Sem rendimentos fixos, ele passa
por dificuldades e acaba se afastando da família. Uma história
triste, mas ainda dentro da nossa
normalidade burguesa. As peripécias de Rodrigues começam a
adquirir contornos extraordinários quando ele é preso. Fora condenado por um roubo que nunca
cometeu (eu acredito na sua palavra) e sem nem mesmo ter sido
ouvido pelo juiz que o julgou.
A empatia é inescapável. Como
um homem de classe média alta,
que cursou uma universidade, teve bons empregos e salários, assistiu aos mesmos filmes e leu os
mesmos livros que nós, vai parar
naquilo que era a maior cadeia da
América Latina? E ainda por cima
injustamente... O que ele fez para
sobreviver? O livro é parte da resposta.
Desde o surgimento da escrita, a
palavra confere poder. Rodrigues
usou o poder da palavra para escapar, no plano psicológico, aos
muros do Carandiru. Ao propor-se escrever as histórias de seus
companheiros, ele deixava um
pouco de ser um preso para tornar-se um cronista, ou, em suas
palavras, um "pesquisador".
Como qualquer obra que leve o
título "Vidas...", o texto de Rodrigues se inscreve na tradição inaugurada por Plutarco no primeiro
século da Era Cristã. Mais do que
relatar as histórias de seus companheiros presos -os acontecimentos que os conduziram à cadeia-, o autor pretende apreender-lhes as vidas, revelar algo de
suas existências morais.
O termo "existência moral" pode parecer paradoxal aqui, afinal,
os biografados não são exatamente varões de Plutarco. Ao contrário, a maioria cometeu crimes
bastante graves, que podem incluir homicídio. É curiosa a cumplicidade que se estabelece entre
Rodrigues e seus companheiros.
Ela extravasa o texto e alcança
também o leitor. Não somos induzidos a esquecer os delitos que
eles perpetraram. Ao contrário,
tudo é contado claramente. Mas
somos levados a ver esses prisioneiros como seres humanos complexos, que enfrentam dificuldades, vivem dilemas e sofrem injustiças, como não poder contar
com auxílio jurídico competente.
Não se trata de desculpar os criminosos, mas de procurar entendê-los. É o que torna "Vidas" incomodamente humano.
Mas chega de elogios. Assim como ocorre com Plutarco, prefiro o
conteúdo das histórias de Rodrigues a seu estilo. O texto é um
pouco repetitivo e com alguma
frequência resvala na pieguice, o
que provavelmente é um problema comum a todo o gênero literatura de prisão. O autor também
abusa das epígrafes, espalhando-as por todos os cantos do livro.
São pequenos defeitos que não
chegam a comprometer o conjunto, cuja força, insisto, reside na
vivacidade das histórias.
"Vidas do Carandiru", a partir
de pequenos instantâneos, oferece elementos para entender melhor o sistema prisional brasileiro
e, por extensão, a própria sociedade brasileira. Não é uma fotografia bonita de ver, apesar de o autor, com um otimismo aparentemente inquebrantável, tentar
transmitir sempre uma mensagem de esperança.
Vidas do Carandiru
Autor: Humberto Rodrigues
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 25 (296 págs.)
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