São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"DEFESAS DA POESIA"

Volume reúne dois textos, escritos com intervalo de 240 anos

Ensaios respondem à visão de Platão sobre a poesia

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Para que poetas? A pergunta conheceu muitas versões e respostas desde que Platão, na "República", advertiu quanto aos perigos da poesia lírica e da epopéia, dizendo que somente "hinos aos deuses e encômios aos varões honestos" deveriam ser admitidos na cidade ideal.
Com cerca de 240 anos de intervalo, duas clássicas "Defesas da Poesia" -a de sir Philip Sidney (1554-1586) e a de Percy Shelley (1792-1822)- empenharam-se em responder ao famoso anátema de Platão. A editora Iluminuras, em colaboração com a Fapesp, reúne os dois textos num único volume, com tradução de Enid Abreu Dobránszky, que também assina um extenso, erudito e importante ensaio introdutório.
Um dos maiores nomes do romantismo inglês, Shelley escreveu sua "Defesa da Poesia" reagindo a uma provocação de seu contemporâneo Thomas Love Peacock (1785-1866), que num panfleto satírico considerava "perdulários de seu tempo e ladrões do tempo dos outros" os que ainda se dedicavam ao inútil exercício do verso.
Pergunta Shelley em que consiste, afinal, aquela idéia de "utilidade", tão valorizada na Inglaterra de 1820. Se "útil" for tudo aquilo que nos livra dos incômodos materiais, certamente as artes mecânicas valem mais que a poesia. Crítico da sociedade industrial, nosso poeta não deixa de observar, entretanto, que com isso "os ricos tornaram-se mais ricos, e os pobres, mais pobres".
Haveria, de qualquer modo, prazeres mais elevados do que os causados pelo simples conforto físico. A melancolia, a tristeza e até "o terror, a angústia, o desespero" são prazeres também, que os poetas devem provocar em benefício do próprio aperfeiçoamento intelectual e moral da humanidade.
A mistura entre reformismo social e sublimidade romântica perpassa todo o texto de Shelley. Desde as primeiras páginas, a poesia é vista como uma espécie de prolongamento simpático, de vibração continuada, de tentativa de perpetuar uma experiência de prazer já extinta. À medida que traça ligações entre as coisas, à medida que se constitui num eco da harmonia planetária, a poesia "desperta e amplia o próprio espírito, tornando-o receptáculo de milhares de inadvertidas combinações de pensamentos".
O que equivale, para Shelley, a ser um instrumento da solidariedade universal; a poesia é como que prefiguração de um pacto, de um contrato novo entre os homens em sociedade. Os poetas, conclui o texto, "são os legisladores não reconhecidos do Mundo". Pode-se perceber de que modo o texto termina se equilibrando numa situação temporal especialmente ambígua, feita de nostalgia diante de um passado harmonioso e também de antecipação utópica de um futuro de liberdade .
Se essa ambiguidade nos parece participar de uma crise muito "moderna", muito familiar a nossas próprias inquietações políticas e estéticas, nem por isso o ensaio de Shelley é de fácil leitura.
Comparativamente, o exército de referências clássicas, de anedotas históricas e de procedimentos de oratória que sir Philip Sidney mobiliza na sua "Defesa da Poesia" de 1582 é bem mais leve.
Político, cortesão e diplomata, Sidney estaria pecando contra o bom gosto se levasse demasiado a sério a própria argumentação. Contra os que a consideram mentirosa e fútil (e Sidney enfrentava, naquela época, os seguidores da religião puritana), o texto insiste no caráter edificante da poesia. Usando dos mais variados argumentos e anedotas, Sidney é, contudo, bem mais divertido do que seu propósito faria supor.
Talvez nossa época tenha se distanciado muito do puritanismo e do espírito de cobrança política a que esses dois textos, cada qual com o vocabulário próprio de seu tempo, procuram responder. Mas, da leitura desses dois clássicos da crítica e do ensaio literário, seria a pior das estreitezas exigir uma utilidade imediata.


Defesas da Poesia
    
Autores: Sir Philip Sidney e Percy Bisshe Shelley
Tradução: Enid Abreu Dobránszky
Editora: Iluminuras/Fapesp
Quanto: R$ 30 (221 págs.)



Texto Anterior: "Vidas do Carandiru": Instantâneos expõem o sistema prisional brasileiro
Próximo Texto: "Os Miseráveis": Victor Hugo engloba o espetáculo da vida
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.