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MARCELO COELHO
O fato mais importante do ano
O século 20 não acaba de
uma hora para outra; em
pleno final de 2005, continuo
achando estranho quando o chamam de "século passado". Como
assim? O "século passado", por
definição, era para mim o 19, o da
rainha Vitória, de Charles Dickens, dos tílburis. Não o de Winston Churchill, de Virginia Woolf e
do Routemaster.
Churchill e Virginia Woolf já
fazem parte de um passado longínquo. Mas o Routemaster
-aquele ônibus vermelho de dois
andares, que marca a paisagem
londrina há muitas décadas- só
foi desativado na semana passada. É um fragmento do século 20
que só agora deixa de existir.
Não sou especialmente sentimental com relação a essas coisas.
Lembro-me de ter andado de
bonde uma vez em São Paulo,
num dia de verão terrível por volta de 1965: adorei a sensação de
velocidade e de frescor dentro do
que me parecia um engradado
precário, que se disponibilizava
sem portinholas nem catracas ao
pedestre, embarcação vazada aos
quatro ventos, animal urbano já
voltado à extinção.
Mas tudo bem. Não vejo vantagem nenhuma nos trólebus, por
exemplo, e, seja como for, nunca
subi num Routemaster. Imagino
que aquilo fosse incômodo e inseguro.
O que me incomodou, ao ler a
reportagem da Folha, foi outra
coisa. É que o prefeito de Londres,
Ken Livingstone, afirmara em
2001 que "só um imbecil desalmado" acabaria com o velho ônibus.
Quatro anos depois, revela-se que
o imbecil desalmado é ele mesmo;
saudosistas enchem as calçadas
de Oxford Street para se despedir
do simpático mastodonte vermelho, há os protestos de praxe, mas
Ken Livingstone não está nem aí
para o que tinha dito ou para o
que terá de ouvir.
Claro, ele pode argumentar do
jeito que conhecemos. A rigor, o
Routemaster não será completamente extinto: continuará funcionando em duas linhas turísticas, bem curtas. Aliás, não é bem
verdade que ele tenha acabado. O
que aconteceu foi uma mudança,
uma melhoria, um progresso em
sua configuração. A cidade de
Londres continuará a ter ônibus
vermelhos de dois andares -isso
eu garanto-, mas sem a velha
plataforma de acesso, sem o focinho de caminhão antigo, sem as
quinas arredondadas, ou seja,
sem aquele monte de detalhes incômodos, ultrapassados, supérfluos, que não agradavam a ninguém. Para que tanta picuinha?
De resto, não é certo que Ken Livingstone tenha realmente dito
aquela frase. A mídia não é confiável, mente muito, os repórteres
tiram nossas frases do contexto,
tudo se distorce e, afinal de contas, há assuntos mais importantes
a tratar do que esse ridículo ônibus vermelho.
Sabemos até onde pode ir esse
tipo de conversa. Logo algum assessor dirá que o Routemaster, se
você pensar melhor, nunca existiu. E o prefeito Ken Livingstone
afirmará estar "cada vez mais
convencido" de que nunca prometeu coisa nenhuma.
Será que estou exagerando?
Mentira e desfaçatez são características indissociáveis da atividade política, acho que desde a Babilônia. Minha dúvida é se o estilo, a técnica, a arte da empulhação política continuam iguais ou
se estamos assistindo a uma mudança de padrão nos últimos
anos.
Regimes totalitários mentiam
sistematicamente: as ideologias
em que estavam baseados traziam consigo um vocabulário
próprio, uma teoria e uma prática fechadas em si mesmas, de modo que ficavam em certa medida
imunes ao teste da realidade. Em
nome das "grandes causas" que
conhecemos, qualquer desonestidade, traição ou mentira era "explicável"; tratava-se de uma necessidade política. O que não eliminava, evidentemente, a possibilidade de ser também um luxo
humorístico dos ditadores de
plantão.
O cinismo de Stálin ou Goebbels
era, desse modo, um instrumento
de poder, de que desfrutavam
prazerosamente. Os mentirosos
de hoje parecem, entretanto, vítimas choramingantes de um sistema que não dominam. Se eu
menti, se continuo mentindo, é
porque eu próprio fui enganado, é
porque me traíram, é porque
mentem para mim. Bush pode dizer isso a respeito da sua colossal
lorota em torno das armas de destruição de massa no Iraque; outros podem dizer o mesmo sobre
suas finanças de campanha.
O mentiroso é um coitadinho;
trata-se de uma espécie de infantilização da mentira política, em
que o apelo místico aos ideais históricos tem, quando muito, um
papel secundário. Muitas vezes,
aliás, a mentira parece uma travessura, uma gratuidade. Imagino que não custava nada para o
prefeito de Londres ser um pouco
menos enfático em suas frases sobre o Routemaster. Mas ele preferiu o exagero.
O ministro Palocci registrou em
cartório seu compromisso de que
não abandonaria a Prefeitura de
Ribeirão Preto para assumir cargos na administração federal. Virou ministro, e ninguém ligou. E
não era para José Serra ficar até o
fim do mandato na prefeitura?
Mas ninguém será ingênuo de
acreditar nisso, com as pesquisas
apontando seu favoritismo na sucessão de Lula. Ninguém se importa quando compromissos são
rompidos.
Esta é a diferença mais importante, creio, entre o cinismo político atual e as mentiras de antigamente: o cidadão sabe, hoje, que
está sendo enganado e quer ser
enganado. Vota na mentira, vota
sem acreditar. O padrão antigo
era o da religião: as promessas dependiam da fé, da ingenuidade
de cada um. O padrão contemporâneo é o da publicidade: consome-se, em plena consciência, não
o produto em si, mas o que ele significa; sabemos que a promessa é
falsa, mas é exatamente isso o que
queremos.
A morte da velhinha de Taubaté foi o evento mais importante
do ano: a personagem de Luis
Fernando Verissimo, como o ônibus de dois andares, vai assim
pertencendo ao século passado. É
outro tipo de mentira, que dispensa ingênuos, a que se coloca
em cena hoje em dia.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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