São Paulo, quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

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MARCELO COELHO

O fato mais importante do ano

O século 20 não acaba de uma hora para outra; em pleno final de 2005, continuo achando estranho quando o chamam de "século passado". Como assim? O "século passado", por definição, era para mim o 19, o da rainha Vitória, de Charles Dickens, dos tílburis. Não o de Winston Churchill, de Virginia Woolf e do Routemaster.
Churchill e Virginia Woolf já fazem parte de um passado longínquo. Mas o Routemaster -aquele ônibus vermelho de dois andares, que marca a paisagem londrina há muitas décadas- só foi desativado na semana passada. É um fragmento do século 20 que só agora deixa de existir.
Não sou especialmente sentimental com relação a essas coisas. Lembro-me de ter andado de bonde uma vez em São Paulo, num dia de verão terrível por volta de 1965: adorei a sensação de velocidade e de frescor dentro do que me parecia um engradado precário, que se disponibilizava sem portinholas nem catracas ao pedestre, embarcação vazada aos quatro ventos, animal urbano já voltado à extinção.
Mas tudo bem. Não vejo vantagem nenhuma nos trólebus, por exemplo, e, seja como for, nunca subi num Routemaster. Imagino que aquilo fosse incômodo e inseguro.
O que me incomodou, ao ler a reportagem da Folha, foi outra coisa. É que o prefeito de Londres, Ken Livingstone, afirmara em 2001 que "só um imbecil desalmado" acabaria com o velho ônibus. Quatro anos depois, revela-se que o imbecil desalmado é ele mesmo; saudosistas enchem as calçadas de Oxford Street para se despedir do simpático mastodonte vermelho, há os protestos de praxe, mas Ken Livingstone não está nem aí para o que tinha dito ou para o que terá de ouvir.
Claro, ele pode argumentar do jeito que conhecemos. A rigor, o Routemaster não será completamente extinto: continuará funcionando em duas linhas turísticas, bem curtas. Aliás, não é bem verdade que ele tenha acabado. O que aconteceu foi uma mudança, uma melhoria, um progresso em sua configuração. A cidade de Londres continuará a ter ônibus vermelhos de dois andares -isso eu garanto-, mas sem a velha plataforma de acesso, sem o focinho de caminhão antigo, sem as quinas arredondadas, ou seja, sem aquele monte de detalhes incômodos, ultrapassados, supérfluos, que não agradavam a ninguém. Para que tanta picuinha?
De resto, não é certo que Ken Livingstone tenha realmente dito aquela frase. A mídia não é confiável, mente muito, os repórteres tiram nossas frases do contexto, tudo se distorce e, afinal de contas, há assuntos mais importantes a tratar do que esse ridículo ônibus vermelho.
Sabemos até onde pode ir esse tipo de conversa. Logo algum assessor dirá que o Routemaster, se você pensar melhor, nunca existiu. E o prefeito Ken Livingstone afirmará estar "cada vez mais convencido" de que nunca prometeu coisa nenhuma.
Será que estou exagerando? Mentira e desfaçatez são características indissociáveis da atividade política, acho que desde a Babilônia. Minha dúvida é se o estilo, a técnica, a arte da empulhação política continuam iguais ou se estamos assistindo a uma mudança de padrão nos últimos anos.
Regimes totalitários mentiam sistematicamente: as ideologias em que estavam baseados traziam consigo um vocabulário próprio, uma teoria e uma prática fechadas em si mesmas, de modo que ficavam em certa medida imunes ao teste da realidade. Em nome das "grandes causas" que conhecemos, qualquer desonestidade, traição ou mentira era "explicável"; tratava-se de uma necessidade política. O que não eliminava, evidentemente, a possibilidade de ser também um luxo humorístico dos ditadores de plantão.
O cinismo de Stálin ou Goebbels era, desse modo, um instrumento de poder, de que desfrutavam prazerosamente. Os mentirosos de hoje parecem, entretanto, vítimas choramingantes de um sistema que não dominam. Se eu menti, se continuo mentindo, é porque eu próprio fui enganado, é porque me traíram, é porque mentem para mim. Bush pode dizer isso a respeito da sua colossal lorota em torno das armas de destruição de massa no Iraque; outros podem dizer o mesmo sobre suas finanças de campanha.
O mentiroso é um coitadinho; trata-se de uma espécie de infantilização da mentira política, em que o apelo místico aos ideais históricos tem, quando muito, um papel secundário. Muitas vezes, aliás, a mentira parece uma travessura, uma gratuidade. Imagino que não custava nada para o prefeito de Londres ser um pouco menos enfático em suas frases sobre o Routemaster. Mas ele preferiu o exagero.
O ministro Palocci registrou em cartório seu compromisso de que não abandonaria a Prefeitura de Ribeirão Preto para assumir cargos na administração federal. Virou ministro, e ninguém ligou. E não era para José Serra ficar até o fim do mandato na prefeitura? Mas ninguém será ingênuo de acreditar nisso, com as pesquisas apontando seu favoritismo na sucessão de Lula. Ninguém se importa quando compromissos são rompidos.
Esta é a diferença mais importante, creio, entre o cinismo político atual e as mentiras de antigamente: o cidadão sabe, hoje, que está sendo enganado e quer ser enganado. Vota na mentira, vota sem acreditar. O padrão antigo era o da religião: as promessas dependiam da fé, da ingenuidade de cada um. O padrão contemporâneo é o da publicidade: consome-se, em plena consciência, não o produto em si, mas o que ele significa; sabemos que a promessa é falsa, mas é exatamente isso o que queremos.
A morte da velhinha de Taubaté foi o evento mais importante do ano: a personagem de Luis Fernando Verissimo, como o ônibus de dois andares, vai assim pertencendo ao século passado. É outro tipo de mentira, que dispensa ingênuos, a que se coloca em cena hoje em dia.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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