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SANTO DE CASA
Gilberto Freyre é o Orson Welles magno da sociologia
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
De onde você é? Sou do interior
de SP. Ah, ele me diz: do bom interior paulista! Saguão do Eldorado Hotel, ao lado do meu caro
amigo Leo Gilson Ribeiro, passamos horas bebericando alguma
coisa e conversando sobre o sergipano Sílvio Romero, que se insurgiu contra o predomínio de
uma região engolindo a outra.
O xará de Apipucos, como eu o
batizei, estava sendo tematizado
por mim, ex-aluno da Universidade de São Paulo que achava
Florestan Fernandes o máximo
em sociologia.
Gilberto Freyre concordou
com o nome do livro: xará com
"x", ele me disse, porque com
"ch" não tem graça. Eu fiquei
contente de ter bolado esse título
lacaniano.
Em Recife, solar de Apipucos,
eu fui buscar o barato íntimo dos
fatos sociais, depois de ter curtido o LP "Chega de Saudade" de
João Gilberto, arranjado por Antônio Carlos Jobim. A conversa
com Freyre impressionou-me tal
qual padre Antônio Vieira encanado no binômio miséria e comparação. Sem comparação não
há miséria, mas sem miséria não
há comparação. Na conversa
com Gilberto Freyre sempre vinha à tona o nome do escritor
Euclides da Cunha, porque o
bom amante deve saber ouvir.
A tese defendida por ele em
Nova York, "A Vida Social no
Brasil do Século 19", é sobre a conexão sonora na sociedade brasileira. Cito-o: "A grande sensibilidade à música terá tornado alguns escravocratas brasileiros
particularmente benévolos e delicados em sua relação com o escravo". Diante disso o marxismo, como dizia Paulo Francis,
caiu-lhe de pau: "Casa Grande e
Senzala" teria adocicado a experiência da escravidão no Brasil.
O olho é o órgão privilegiado
de sua atividade de escritor. Um
escritor pintor que realça a oralidade: nosso passado patriarcal é
antes visto do que lido. É impressionante sua capacidade de criar
conceitos novos e originais nas
ciências sociais.
Não é por acaso que a separação entre etnia e cultura em "Casa Grande e Senzala" situa o homem brasileiro como ser ecológico e não exclusivamente como
um ser étnico e racial. Ao mesmo
tempo que nega a raça, a morenidade afirma de modo contraditório a meta-raça.
Gilberto Freyre reconhece na
autocolonização do negro africano brasileiro não apenas o objeto
escravo, mas sim o sujeito de
uma nova práxis no novo mundo que o português criou.
Roger Bastide batizou a sociologia de Gilberto Freyre de "sociologia proustiana". Roland
Barthes o coloca nas alturas: escritor místico-erótico. Loyola
tropical. Franklin de Oliveira
percebeu que Gilberto Freyre foi
o primeiro sociólogo a reconhecer traços islâmicos no Brasil patriarcal. Cristianismo de influência pagã e maometana. Cristianismo carnal. Em "Casa Grande
e Senzala" deparamo-nos com o
seguinte trecho: "O menino Jesus só faltava engatinhar com os
meninos da casa".
Darcy Ribeiro deixou claro que
o xará de Apipucos preferia errar
na ciência do que fracassar como
escritor. É bom lembrar a advertência de Nietzsche: "A dialética
expulsa a música".
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O
Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo),
entre outros
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