São Paulo, Sábado, 22 de Janeiro de 2000


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SANTO DE CASA
Gilberto Freyre é o Orson Welles magno da sociologia

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha


De onde você é? Sou do interior de SP. Ah, ele me diz: do bom interior paulista! Saguão do Eldorado Hotel, ao lado do meu caro amigo Leo Gilson Ribeiro, passamos horas bebericando alguma coisa e conversando sobre o sergipano Sílvio Romero, que se insurgiu contra o predomínio de uma região engolindo a outra.
O xará de Apipucos, como eu o batizei, estava sendo tematizado por mim, ex-aluno da Universidade de São Paulo que achava Florestan Fernandes o máximo em sociologia.
Gilberto Freyre concordou com o nome do livro: xará com "x", ele me disse, porque com "ch" não tem graça. Eu fiquei contente de ter bolado esse título lacaniano.
Em Recife, solar de Apipucos, eu fui buscar o barato íntimo dos fatos sociais, depois de ter curtido o LP "Chega de Saudade" de João Gilberto, arranjado por Antônio Carlos Jobim. A conversa com Freyre impressionou-me tal qual padre Antônio Vieira encanado no binômio miséria e comparação. Sem comparação não há miséria, mas sem miséria não há comparação. Na conversa com Gilberto Freyre sempre vinha à tona o nome do escritor Euclides da Cunha, porque o bom amante deve saber ouvir.
A tese defendida por ele em Nova York, "A Vida Social no Brasil do Século 19", é sobre a conexão sonora na sociedade brasileira. Cito-o: "A grande sensibilidade à música terá tornado alguns escravocratas brasileiros particularmente benévolos e delicados em sua relação com o escravo". Diante disso o marxismo, como dizia Paulo Francis, caiu-lhe de pau: "Casa Grande e Senzala" teria adocicado a experiência da escravidão no Brasil.
O olho é o órgão privilegiado de sua atividade de escritor. Um escritor pintor que realça a oralidade: nosso passado patriarcal é antes visto do que lido. É impressionante sua capacidade de criar conceitos novos e originais nas ciências sociais.
Não é por acaso que a separação entre etnia e cultura em "Casa Grande e Senzala" situa o homem brasileiro como ser ecológico e não exclusivamente como um ser étnico e racial. Ao mesmo tempo que nega a raça, a morenidade afirma de modo contraditório a meta-raça.
Gilberto Freyre reconhece na autocolonização do negro africano brasileiro não apenas o objeto escravo, mas sim o sujeito de uma nova práxis no novo mundo que o português criou.
Roger Bastide batizou a sociologia de Gilberto Freyre de "sociologia proustiana". Roland Barthes o coloca nas alturas: escritor místico-erótico. Loyola tropical. Franklin de Oliveira percebeu que Gilberto Freyre foi o primeiro sociólogo a reconhecer traços islâmicos no Brasil patriarcal. Cristianismo de influência pagã e maometana. Cristianismo carnal. Em "Casa Grande e Senzala" deparamo-nos com o seguinte trecho: "O menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa".
Darcy Ribeiro deixou claro que o xará de Apipucos preferia errar na ciência do que fracassar como escritor. É bom lembrar a advertência de Nietzsche: "A dialética expulsa a música".


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros

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