São Paulo, Sábado, 22 de Janeiro de 2000


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LIVRO LANÇAMENTOS
Unamuno e o ópio do povo assumido

CYNARA MENEZES
especial para a Folha


Há livros deliciosos com muitas páginas e livros fininhos absolutamente chatos. E há esta maravilha da literatura: poucas páginas e muito sabor.
São pequenas grandes obras, como "O Visconde Partido ao Meio", de Ítalo Calvino, ou "A Metamorfose", de Kafka, ambos com menos de cem páginas.
Outro desses grandes livrinhos é "São Manuel Bueno, Mártir", de Miguel de Unamuno, que a L&PM põe nas livrarias pela primeira vez no Brasil a partir da próxima semana.
É tão pequeno que sai em formato "pocket book", à venda também nas bancas de revistas. Com pouco mais de 70 páginas, cabe mesmo no bolso. O espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) o publicou originalmente em 1930.
Filósofo, ensaísta, dramaturgo, novelista e poeta, amado e odiado em doses semelhantes, Unamuno exibe nesse romance, considerado o melhor de sua obra ficcional, uma concepção definida por estudiosos como "catolicismo ateu" ou "ateísmo religioso".
Cristão sem crença, o escritor espanhol admirava a atitude generosa inspirada em Jesus, mas não a religião que resultou dela (não é, afinal, atribuída a outro espanhol, Luis Buñuel, a frase "Sou ateu, graças a Deus"?). Em vez de filosofar sobre o tema, porém, Unamuno, como Calvino, preferiu a fábula.
O protagonista, d. Manuel, é o padre da pequena Valverde de Lucerna, no coração da fervorosa Espanha. Amado por toda a aldeia, é considerado um santo, bondoso e justo que é com tudo e todos em sua paróquia.
Mas o padre esconde um terrível segredo, suspeitado cotidianamente em seus olhos tristes, mas não adivinhado, por sua mais fiel seguidora, Angelina. A chegada do irmão ateu de Angelina, Lázaro, ao vilarejo vai acelerar a revelação: d. Manuel, o Bom, não acredita em Deus.
O segredo é mantido entre os três. O povo, como quer o padre, não pode ser abalado em sua fé, deve ser mantido longe da verdade sobre a descrença de seu próprio sacerdote. "A verdade, Lázaro, é algo terrível, algo intolerável, algo mortal; a gente simples não poderia viver com ela", explica a seu amigo e confidente.
A contradição exposta por Unamuno é que, sem crença, d. Manuel dá sua maior prova de santidade -uma santidade meio manipuladora, às vezes- ao fazer ter fé sem possuí-la. "A minha (religião) é consolar-me em consolar os demais, ainda que o consolo que lhes dou não seja o meu."
A religião enquanto ópio do povo é assumida sem culpa. Diz o padre: "Ópio, sim. Demos-lhe ópio, e que durma e sonhe". Santo, d. Manuel sofre a angústia dos que não têm fé -e gostariam de tê-la. Quem crê é feliz; quem não crê, como ele, sofre. É o que deve ter sentido Unamuno, inveja da fé.
Seu pequeno grande livro é um convite à reflexão sobre a existência divina, mas tampouco converte: quem for agnóstico sairá de Valverde de Lucerna com mais dúvidas ainda na cabeça.


Avaliação:     


Livro: São Manuel Bueno, Mártir
Autor: Miguel de Unamuno
Tradutor: Sergio Faraco
Editora: L&PM
Quanto: R$ 4,50 (76 págs.)


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