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LIVRO LANÇAMENTOS
Unamuno e o ópio do povo assumido
CYNARA MENEZES
especial para a Folha
Há livros deliciosos com muitas
páginas e livros fininhos absolutamente chatos. E há esta maravilha da literatura: poucas páginas e
muito sabor.
São pequenas grandes obras,
como "O Visconde Partido ao
Meio", de Ítalo Calvino, ou "A
Metamorfose", de Kafka, ambos
com menos de cem páginas.
Outro desses grandes livrinhos
é "São Manuel Bueno, Mártir", de
Miguel de Unamuno, que a
L&PM põe nas livrarias pela primeira vez no Brasil a partir da
próxima semana.
É tão pequeno que sai em formato "pocket book", à venda
também nas bancas de revistas.
Com pouco mais de 70 páginas,
cabe mesmo no bolso. O espanhol
Miguel de Unamuno (1864-1936)
o publicou originalmente em
1930.
Filósofo, ensaísta, dramaturgo,
novelista e poeta, amado e odiado
em doses semelhantes, Unamuno
exibe nesse romance, considerado o melhor de sua obra ficcional,
uma concepção definida por estudiosos como "catolicismo ateu"
ou "ateísmo religioso".
Cristão sem crença, o escritor
espanhol admirava a atitude generosa inspirada em Jesus, mas
não a religião que resultou dela
(não é, afinal, atribuída a outro espanhol, Luis Buñuel, a frase "Sou
ateu, graças a Deus"?). Em vez de
filosofar sobre o tema, porém,
Unamuno, como Calvino, preferiu a fábula.
O protagonista, d. Manuel, é o
padre da pequena Valverde de
Lucerna, no coração da fervorosa
Espanha. Amado por toda a aldeia, é considerado um santo,
bondoso e justo que é com tudo e
todos em sua paróquia.
Mas o padre esconde um terrível segredo, suspeitado cotidianamente em seus olhos tristes, mas
não adivinhado, por sua mais fiel
seguidora, Angelina. A chegada
do irmão ateu de Angelina, Lázaro, ao vilarejo vai acelerar a revelação: d. Manuel, o Bom, não
acredita em Deus.
O segredo é mantido entre os
três. O povo, como quer o padre,
não pode ser abalado em sua fé,
deve ser mantido longe da verdade sobre a descrença de seu próprio sacerdote. "A verdade, Lázaro, é algo terrível, algo intolerável,
algo mortal; a gente simples não
poderia viver com ela", explica a
seu amigo e confidente.
A contradição exposta por Unamuno é que, sem crença, d. Manuel dá sua maior prova de santidade -uma santidade meio manipuladora, às vezes- ao fazer
ter fé sem possuí-la. "A minha
(religião) é consolar-me em consolar os demais, ainda que o consolo que lhes dou não seja o meu."
A religião enquanto ópio do povo é assumida sem culpa. Diz o
padre: "Ópio, sim. Demos-lhe
ópio, e que durma e sonhe". Santo, d. Manuel sofre a angústia dos
que não têm fé -e gostariam de
tê-la. Quem crê é feliz; quem não
crê, como ele, sofre. É o que deve
ter sentido Unamuno, inveja da
fé.
Seu pequeno grande livro é um
convite à reflexão sobre a existência divina, mas tampouco converte: quem for agnóstico sairá de
Valverde de Lucerna com mais
dúvidas ainda na cabeça.
Avaliação:
Livro: São Manuel Bueno, Mártir
Autor: Miguel de Unamuno
Tradutor: Sergio Faraco
Editora: L&PM
Quanto: R$ 4,50 (76 págs.)
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