São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 2001

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ANÁLISE

"Brava Gente Brasileira", bravas mulheres

BETTY MINDLIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Brava Gente Brasileira", o filme de Lúcia Murat, os índios aparecem em toda a sua grandeza. Já existem muitos bons filmes sobre índios no Brasil. Basta lembrar "Como Era Gostoso Meu Francês", de Nelson Pereira dos Santos, "Uirá, um Índio em Busca de Deus", de Gustavo Dahl, "Avaeté" e "Terra dos Índios", ambos de Zelito Viana, "Brincando nos Campos do Senhor", de Hector Babenco e "Hans Staden", de Luis Alberto Pereira. Todos são dramáticos, violentos, e não à toa, pois são o retrato do que os europeus e, em seguida o Brasil, fizeram com os povos indígenas.
O filme de Lúcia Murat está entre os melhores, um épico, evocando americanos como "Um Homem Chamado Cavalo". Emociona e mantém o suspense o tempo todo, com atores, fotografia, música, paisagens e cenários de alta qualidade e montagem inventiva. Ficção muito bem documentada, passa-se no final do século 18, no Forte de Coimbra, Mato Grosso do Sul. Os kadiwéus, descendentes dos guaicurus, protagonistas da história, magníficos cavaleiros, são atores no filme, falando sua língua, do tronco aruak, o que confere aos índios um certo caráter de autoria e dá o tom de mundo estranho que o espectador tenta entender, como se fosse um viajante chegando às aldeias.
Mas a grande novidade é o final: pelo menos uma vez, uma vitória inesperada dos índios, e em particular das mulheres.
Uma das grandes e terríveis cenas do filme é a do estupro e massacre de um grupo de mulheres guaicurus, surpreendidas num banho idílico no paraíso da floresta, quando riam, brincavam e mergulhavam. É assim mesmo estar entre os índios: essa qualidade de erotismo, leveza, desejo de prazer que são o que mais toma quem tem o privilégio de conhecer a vida na floresta. É trágico pensar que a humanidade, ao entrar em contato com um modo de ser poético, artístico e inusitado, se oriente para consumir e se apropriar, destruindo, em vez de fruir, preservar, participar. O quadro é magistral, percorre a beleza e o horror máximos.
Sendo ficção histórica, o enredo não precisaria necessariamente seguir os fatos, mas é muito bem documentado. Os guaicurus ou povos aparentados, e principalmente os kadiwéus, contam com muitos estudos importantes. É do relato de Francisco Rodrigues do Prado, comandante do forte português de Coimbra em 1795, que é extraído o final do enredo, quando as mulheres vencem os portugueses pela sedução, bando de Judiths com Holofernes.
O livro mais usado por Lúcia Murat é o de Guido Boggiani, que visitou os kadiwéus em 1892 e foi assassinado por um índio chamacoco. Boggiani reproduziu as pinturas de corpo dos kadiwéu, que tanto impressionaram Lévi-Strauss, com sua assimetria e complexidade. Na ficção de Lúcia Murat, o personagem português Diogo de Castro e Albuquerque, iluminista influenciado pelas idéias de Rousseau, é quem escreve um livro, ilustrado com as pinturas de corpo, aqui reinventadas.
Quando Darcy Ribeiro levou o livro de Boggiani aos kadiwéus, estes se reconheceram e consideraram Darcy um parente de Boggiani, portanto membro especial do povo. O filme acaba com uma velha kadiwéu recitando em língua indígena e folheando o livro do português.
Uma grande qualidade de "Brava Gente Brasileira" é a de não ser maniqueísta, nem se deixar levar pela imagem do bom selvagem, apesar de invocar Rousseau. Impiedoso com os colonizadores, como deveria ser, mostra os índios como são, como grandes nações, espantosos.
Os kadiwéus, descendentes dos guaicurus, são, como descreve Darcy Ribeiro, autor do estudo mais completo sobre eles, um povo com características e mentalidade senhoriais. Tinham uma estratificação social que era quase a instituição da escravidão, embora tratassem melhor os escravos do que os europeus e tivessem com os povos submetidos relações de vassalagem, nem sempre se apropriando dos vassalos como escravos. Havia entre os kadiwéus os senhores, chamados capitães, e suas mulheres, as donas, os soldados, e, por último, os escravos que faziam o trabalho agrícola e serviçal. A mitologia dos kadiwéus já exibe a crença do povo na própria superioridade. Há dois demiurgos, os criadores Gô-noêno-hôdi e Caracará; o primeiro é generoso, solar, traz a abundância e propõe a vida eterna para os homens; o segundo é maldoso, arruma confusão, pedindo ao companheiro os muitos males que temos hoje. Mostra ao primeiro que a facilidade não servia, não se podia ver quem era trabalhador, quais mulheres faziam sua tarefas com perfeição; e Gô-noêno-hôdi deixou-se convencer, fazendo surgir o esforço e o trabalho. Caracará fez o companheiro originar a morte; quando a própria mãe morre, se arrepende, mas em vão, a morte passa a existir. Caracará é o "trickster", o malandro, o safado, mas também traz coisas boas. Foi ele quem pediu a Gô-noêno-hôdi a criação dos kadiwéus. Como toda a humanidade já estava criada, a terra já distribuída, então os criadores dão aos kadiwéus o direito de roubar os outros, de fazer a guerra, lhes dão a superioridade pela força, não pela astúcia. Daí a tendência ao domínio de outros povos, ao saque, e à estratificação social, à guerra, anterior ao contato com os europeus. A guerra existe em quase todos os povos indígenas, mas é a guerra para roubar gente.
Característica que diferencia muito os kadiwéus de outros povos, e que aparece no filme, é o crescimento populacional pelo roubo de crianças e escravos, mais que pela reprodução. Recorriam muito ao aborto e ao infanticídio. Cronistas, Almeida Serra ou Prado, mostram que 10% da população eram guaicurus. As mulheres recorriam ao aborto ou tinham poucos filhos, um ou dois, ou por causa da vida nômade, ou para conservarem seus homens, que as deixavam de lado durante a gravidez. Sabe-se lá por quê feministas sem anticoncepcionais, pílulas, camisinhas, usavam aborto e infanticídio.
Outro traço cultural específico dos kadiwéus/guaicurus, talvez de alguns outros poucos povos, é a existência dos "cudina", os homens com papel de mulher.
Darcy Ribeiro escreve que, segundo suas observações, os kadiwéus têm duas formas de nominação, que vão determinar a personalidade de quem recebe o nome. Na primeira, formam-se os homens guerreiros, belicosos, mandões, que trabalham pouco. Na segunda, os que são pacíficos, doces, que se dedicam ao trabalho agrícola e são excelentes pais de família. Cabe aos pais escolherem qual dos dois gêneros de nomes querem para a criança. Entre os pacatos, estão os "cudina". A pressão social e os padrões educacionais forjam a personalidade com os traços esperados. Darcy observou uma correspondência muito estreita entre os nomes e a personalidade, o que faz pensar nos estudos de Margaret Mead sobre sexo e temperamento.
Soberba e orgulho manifestam-se nos mitos kadiwéus sobre os brasileiros, que, segundo eles, não tinham mulheres. Gô-noêno-hôdi deixa para os brasileiros só "a coisa da mulher", sem corpo. Promete voltar mais tarde, mas a "coisa" apodrece. Por isso, diz a história, os brasileiros têm de comprar mulher, não são como os kadiwéus, que casam com parentes. Brasileiros são tratados com animosidade e ironia.
Diz Lúcia Murat que o principal tema de que tratou é a dificuldade de compreensão intercultural, de percepção verdadeira de quem são os outros. Entre as muitas questões que aparecem nessa bela história dos guaicurus e dos colonizadores está a do amor interétnico. A personagem do português Diogo, libertário, apaixonado pelo que vai percebendo dos índios e da amada prisioneira, o elo amoroso que faz com ela pela arte e pela pintura, e sua transformação final ao aprender que existe infanticídio, são emblemáticos. O ator português, Diogo Infante, está excelente, fazendo líricos olhares de amor, quase como quem recita "aquela cativa que me tem cativo", que certamente irão cativar em especial o público feminino.
Há um magnífico ator kadiwéu, um menino que faz o papel de uma criança roubada dos brasileiros. O garoto é neto de João Príncipe, um grande chefe, morto de mordida de cobra em 1986, com quem Darcy Ribeiro fez pesquisa. João Príncipe teria gostado muito de ver o filme.

Betty Mindlin é doutora em antropologia pela PUC-SP e fundadora do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente




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