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LIVRO/CRÍTICA
Ficção de "Blonde" persegue verdadeira Marilyn
LAURA MILLER
DO "THE NEW YORK TIMES"
"Estou sempre esbarrando
no inconsciente das pessoas", disse Marilyn Monroe certa
vez a um entrevistador, e é quase
possível imaginar a maneira atônita e rouca com que ela deve ter
pronunciado a frase, naquela voz
infantil que usava para fazer suas
observações mais inteligentes.
A Marilyn Monroe histórica se
assemelha a uma daquelas partículas subatômicas, invisíveis aos
olhos e só mensuráveis devido aos
efeitos que causam nos objetos
que as cercam -no caso de Monroe, "o inconsciente das pessoas". As personas a ela designadas -loira burra, anjo do sexo,
garotinha perdida, cordeiro para
o sacrifício, artista reprimida, diva
autodestrutiva- são todas irritantemente unidimensionais e
não podem ser transformadas em
algo com maior profundidade.
Até mesmo a idéia de que ela era
fundamentalmente desconhecida
e não passível de conhecimento
porque as pessoas impunham
seus sonhos a ela não passa de um
clichê, a tese barata de um biógrafo de segunda linha.
Joyce Carol Oates toma o caminho mais ousado para tentar
compreender "a charada, a maldição de Monroe", seguindo direta e francamente rumo à ficção.
"Blonde", seu novo romance, é
gordo, bagunçado e feroz. Parte
gótico e parte caleidoscópico, um
romance de idéias, mas também
mais uma fofoca sobre as celebridades e, ainda assim, menos do
que hipnotizante.
A realização é notável porque o
impacto imediato e visceral da
imagem de Monroe é um fenômeno intensamente cinematográfico, algo que desafia a mente
especulativa e introvertida da literatura. As palavras inertes "uma
mulher bonita" significam tão
pouco, enquanto o rosto e o corpo
de Marilyn, transubstanciados
pela câmera, continuam a ser
uma revelação de suavidade diáfana e ensolarada.
É claro que uma mulher real e
claramente infeliz vivia dentro
daquele maravilhoso artefato de
carne e luz, e Oates vê "Blonde"
como uma maneira de descrever
as experiências dessa mulher. Se
um romance não pode expor a
beleza de Marilyn, uma força que
deu forma de maneira extremamente poderosa à maneira pela
qual as pessoas se comportavam
em relação a ela, mesmo assim é
capaz de nos dar uma visão de seu
mundo interior melhor do que a
de qualquer filme.
Em sua introdução, Oates reconhece que comprimiu os numerosos amantes, crises médicas,
abortos, tentativas de suicídio e
trabalhos cinematográficos de
Marilyn em "alguns poucos, seletos e simbólicos". Dois dos primeiros agentes de Marilyn foram
combinados em um personagem,
e os nomes de pessoas como seu
primeiro marido e sua massagista
foram mudados.
Oates expandiu suas jamais
confirmadas ligações com Charles Chaplin Jr. e Edward G. Robinson Jr. e fez delas um ménage à
trois contínuo e significativo.
A mais familiar das lendas a respeito de Monroe a retrata como
uma inocente frágil explorada e,
por fim, esmagada por Hollywood, uma fábula que ignora despudoradamente aquilo que Norman Mailer classificou como "um
completo pedigree de insanidade" do lado materno da atriz.
A mãe, avô e avó de Monroe
morreram em instituições mentais, e um de seus tios se suicidou.
Do lado de seu pai, temos um vácuo. Gladys, a mãe de Monroe, jamais revelou quem fosse. Para
Oates, a loucura de sua mãe e a
ausência de seu pai a encaminharam à miséria e ao desastre, mas
os hábitos predatórios dos homens completaram o trabalho.
A parte mais forte de "Blonde"
descreve a infância e a juventude
de Monroe em Los Angeles,
quando ela era conhecida como
Norma Jeane Baker. Se os casamentos dela com Joe DiMaggio e
Arthur Miller são um tanto perturbadores, quase como se tivessem surgido como idéias de roteiro, quase tanto atos simbólicos
quanto íntimos (Oates se refere a
eles apenas com o "o ex-atleta" e
"o dramaturgo"), o mesmo poderia ser dito, estranhamente, sobre
a sua infância.
A Gladys de Oates é uma ex-atriz que se tornou reveladora de
filmes para um estúdio cinematográfico (Gladys era, historicamente, uma editora de negativos).
Quando Gladys sofre um colapso
nervoso, Norma Jeane é exilada
para um orfanato e, mais tarde,
para um lar adotivo onde seu corpo em botão perturba o equilíbrio
da família.
Sua mãe adotiva a pressiona a se
casar cedo, e o casamento acaba
quando o marido, incapaz de
atender a todas as suas carências,
se alista na marinha mercante durante a Segunda Guerra Mundial.
Um fotógrafo a "descobre" trabalhando em uma fábrica, e ela começa a trabalhar como modelo de
fotos ousadas, enquanto procura
uma brechinha no cinema.
A descrição que Oates faz de sua
vida nos subúrbios operários de
Hollywood captura a sinistra lassidão que ainda persiste em certas
partes de Los Angeles; é quase como se a vitalidade de todos tivesse
sido sugada para alimentar a máquina de ilusões que funciona ali
ao lado.
Norma Jeane passa grande parte de sua infância em um bangalô
com as janelas fechadas, com
Gladys deitada em uma colcha suja, enlouquecendo gradativamente, ou no carro de sua mãe, sendo
levada a passeios lentos pelas ruas
em que moram os astros, hipnotizada pelas histórias de Gladys sobre o homem misterioso e poderoso que a gerou e que um dia irá
recuperá-las ambas.
No começo de seu casamento,
ela se perde nos "prazeres rítmicos, repetitivos, hipnóticos do trabalho doméstico" em um apartamento sonolento em Mission Hill.
Quando Norma Jeane começa a
procurar as agências de modelos
de terceira categoria, Oates não
precisa descrever a sequência de
salas de espera enfadonhas onde a
poeira se assenta sobre os móveis
baratos, revestidos de vinil. É quase possível farejá-las.
O suor é uma preocupação dominante nesse romance, e, em seu
primeiro terço, a maioria dos personagens aparece pelo menos
uma vez com grandes manchas
de suor nas axilas.
Manter a tênue sofisticação social que as separa de suas raízes
operárias é, para Gladys e Norma
Jeane, frequentemente uma complicada questão de manter a limpeza e o frescor; Norma Jeane reconhece a insanidade de sua mãe
pelo nariz, em seu "cheiro sujo
azedo afermentado". As menstruações de Monroe, doloridas e
copiosas, só fazem aumentar o
seu terror de "suar até esgotar o
desodorante em um dia férvido
de verão. O terror de cheirar mal,
o terror de manchar um vestido".
Oates vê Monroe como uma
atriz forte, instintiva, sabotada e
torturada por um mundo masculino que tanto desejava quanto
desprezava seu corpo. Encontrando por acaso uma de suas fotos como pin-up, o pai adotivo de
Marilyn sente "um desejo torturante e, ao mesmo tempo, uma
profunda repulsa, como se tivesse
mordido algo podre"; esse tipo de
resposta distorcida perturba Norma Jeane ao longo de toda a sua
vida. "Blonde", ainda que às vezes
sentimental e desleixado, é talvez
o mais feroz dos tratados de ficção
já escritos sobre o inabitável grotesco da feminilidade.
Ninguém incorporou a feminilidade melhor do que Marilyn
Monroe, que criou uma persona
que parecia existir apenas para o
sexo e ao mesmo tempo não prestar muita atenção nele, dotada de
um erotismo que era todo resposta e nenhum desejo.
De que outra maneira atender a
uma sexualidade masculina que
se odeia e exige que as mulheres
recebam e portem esse ódio como
mulheres leais limpando a sujeira
deixada pelas violentas bebedeiras de seus maridos?
Para Oates, essa rapacidade gelada dos homens atinge seu ápice
em duas figuras: John F. Kennedy,
que seduz Marilyn e depois a trata
com desprezo, e um agente do governo criado à maneira de Don
DeLillo (mas não muito convincente), conhecido apenas como
"Tiro Certo", que a espiona. Mas
mesmo os homens que amaram
Marilyn, como Miller, diz Oates, a
martirizaram diante de uma visão
idealizada, e por isso truncada, do
eterno feminino: Marilyn como
uma fonte de doçura simples em
uma paisagem envenenada, como um objeto a ser resgatado.
Há muito fascinada pelo erotismo do domínio e da submissão,
Oates frequentemente acompanhou esses interesses até o território do "grand guignol". Ela escreveu romances em que os personagens centrais eram baseados no
assassino serial canibal Jeffrey
Dahmer e na desafortunada e moribunda Mary Jo Kopechne (vítima de afogamento depois de um
acidente de carro envolvendo o
senador Edward Kennedy), com
resultados que muitas vezes soam
histriônicos e sobrecarregados
em termos de metáfora. Com Monroe, porém, Oates não tem como
ir longe demais; seu tema tem
proporções de cinemascope, é um
titã inconteste na imaginação mítica dos Estados Unidos, de modo
que não há como fazê-la vulgar
em excesso ou grandiosa demais.
A flexibilidade que permite alguns momentos de um kitsch genuinamente terrível (particularmente a expressão de um desdém
continuado sobre arquétipos cinematográficos conhecidos como
"O Príncipe Escuro" e a "Princesa
Loira") também dão à autora a liberdade para escrever a seguinte
passagem sobre o último filme de
Marilyn, "Os Desajustados":
"Havia uma teimosa integridade. Os personagens se assemelhavam a atores alquebrados. Rostos
famosos, mas mudados de alguma forma. Você olhava Gay Langland e pensava se ele um dia não
fora Clark Gable. Olhava o combalido campeão de rodeio Perce
Howland e lembrava com assombro que ele foi Montgomery Clift
um dia. Trata-se de pessoas que
você conheceu quando criança.
Gay Langland era um tio solteiro;
Roslyn Taylor, uma amiga de sua
mãe, uma divorciada de cidade
pequena...".
"O astro de rodeio era um sujeito sem eira nem beira, magro, de
olhos tristes, com um rosto arruinado. Podia-se encontrá-lo no começo da noite em frente à estação
de ônibus, fumando e olhando
fantasmagoricamente em sua direção. Ei, você me conhece? Eram
norte-americanos comuns dos
anos 50, mas misteriosos para você porque os conhecera muito
tempo atrás, quando o mundo era
misterioso e até mesmo o seu rosto, contemplado no espelho, por
exemplo, da máquina de cigarros
em uma estação de ônibus ou em
um espelho molhado por sobre a
pia de um lavatório, era um mistério insolúvel."
Oates também descreve "Os Desajustados" como a única ocasião
em que Monroe pode expressar
em sua arte a raiva que poderia tê-la libertado. Mas mesmo esse retrato generoso de Norma Jeane
parece estranhamente restrito. O
que falta é, em parte, a raiva que
ela devia sentir, mas principalmente sua força de vontade. As
dificuldades que ela enfrentava
para ter um filho a forçaram a
passar por 12 abortos.
Seu estrelato, por mais que ela
tenha vindo a odiá-lo, foi produto
de anos de esforço determinado, e
ela lutou ferozmente com o estúdio por controle; talvez seu maior
erro tenha sido acreditar que podia ganhar esse jogo, mas ainda
assim ela tentou vencer.
Porém a Norma Jeane de Oates
não procura a câmera; é caçada
por ela. Aquele primeiro fotógrafo "a perseguiu em meio às fuselagens e não aceitava um não como
resposta". A licença poética de
Oates ao usar um aborto por 12
transforma em infortúnio doloroso aquilo que deve ter sido uma
política determinada.
Será que a autora não consegue
admitir a vontade de Norma Jeane, ou Norma Jeane mesma é que
não a vê? A atriz já vê sua personalidade como dividida -ela contém Norma Jeane, "a atriz loira",
"Marilyn" e uma impostora lastimável conhecida como "a criada
pedinte". Oates poderia ter imaginado uma presença invisível a
Norma Jeane que dirige todo o
conglomerado. O romance de
Oates é prejudicado por jamais ficar claro se esse ponto cego é da
autora ou do personagem.
Tanto a Norma Jeane de Oates
quanto a mítica Marilyn devem
sua capacidade de fascinar à sua
condição de vítimas. Às vezes a
potência dos ícones culturais está
mais nos fantasmas das emoções
exiladas por sua simplicidade radical -o maricas em John Wayne, o nerd em James Dean e a parte da doce e indefesa Marilyn Monroe que era, em última análise, o
piloto de sua alma.
Laura Miller é editora da revista
"Salon.com" na Internet
Tradução Paulo Migliacci
Blonde
Autor: Joyce Carol Oates
Editora: Ecco Press
Quanto: US$ 22 (737 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com
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