São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 2001

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LIVRO/CRÍTICA

Ficção de "Blonde" persegue verdadeira Marilyn

LAURA MILLER
DO "THE NEW YORK TIMES"

"Estou sempre esbarrando no inconsciente das pessoas", disse Marilyn Monroe certa vez a um entrevistador, e é quase possível imaginar a maneira atônita e rouca com que ela deve ter pronunciado a frase, naquela voz infantil que usava para fazer suas observações mais inteligentes.
A Marilyn Monroe histórica se assemelha a uma daquelas partículas subatômicas, invisíveis aos olhos e só mensuráveis devido aos efeitos que causam nos objetos que as cercam -no caso de Monroe, "o inconsciente das pessoas". As personas a ela designadas -loira burra, anjo do sexo, garotinha perdida, cordeiro para o sacrifício, artista reprimida, diva autodestrutiva- são todas irritantemente unidimensionais e não podem ser transformadas em algo com maior profundidade.
Até mesmo a idéia de que ela era fundamentalmente desconhecida e não passível de conhecimento porque as pessoas impunham seus sonhos a ela não passa de um clichê, a tese barata de um biógrafo de segunda linha.
Joyce Carol Oates toma o caminho mais ousado para tentar compreender "a charada, a maldição de Monroe", seguindo direta e francamente rumo à ficção. "Blonde", seu novo romance, é gordo, bagunçado e feroz. Parte gótico e parte caleidoscópico, um romance de idéias, mas também mais uma fofoca sobre as celebridades e, ainda assim, menos do que hipnotizante.
A realização é notável porque o impacto imediato e visceral da imagem de Monroe é um fenômeno intensamente cinematográfico, algo que desafia a mente especulativa e introvertida da literatura. As palavras inertes "uma mulher bonita" significam tão pouco, enquanto o rosto e o corpo de Marilyn, transubstanciados pela câmera, continuam a ser uma revelação de suavidade diáfana e ensolarada.
É claro que uma mulher real e claramente infeliz vivia dentro daquele maravilhoso artefato de carne e luz, e Oates vê "Blonde" como uma maneira de descrever as experiências dessa mulher. Se um romance não pode expor a beleza de Marilyn, uma força que deu forma de maneira extremamente poderosa à maneira pela qual as pessoas se comportavam em relação a ela, mesmo assim é capaz de nos dar uma visão de seu mundo interior melhor do que a de qualquer filme.
Em sua introdução, Oates reconhece que comprimiu os numerosos amantes, crises médicas, abortos, tentativas de suicídio e trabalhos cinematográficos de Marilyn em "alguns poucos, seletos e simbólicos". Dois dos primeiros agentes de Marilyn foram combinados em um personagem, e os nomes de pessoas como seu primeiro marido e sua massagista foram mudados.
Oates expandiu suas jamais confirmadas ligações com Charles Chaplin Jr. e Edward G. Robinson Jr. e fez delas um ménage à trois contínuo e significativo.
A mais familiar das lendas a respeito de Monroe a retrata como uma inocente frágil explorada e, por fim, esmagada por Hollywood, uma fábula que ignora despudoradamente aquilo que Norman Mailer classificou como "um completo pedigree de insanidade" do lado materno da atriz.
A mãe, avô e avó de Monroe morreram em instituições mentais, e um de seus tios se suicidou. Do lado de seu pai, temos um vácuo. Gladys, a mãe de Monroe, jamais revelou quem fosse. Para Oates, a loucura de sua mãe e a ausência de seu pai a encaminharam à miséria e ao desastre, mas os hábitos predatórios dos homens completaram o trabalho.
A parte mais forte de "Blonde" descreve a infância e a juventude de Monroe em Los Angeles, quando ela era conhecida como Norma Jeane Baker. Se os casamentos dela com Joe DiMaggio e Arthur Miller são um tanto perturbadores, quase como se tivessem surgido como idéias de roteiro, quase tanto atos simbólicos quanto íntimos (Oates se refere a eles apenas com o "o ex-atleta" e "o dramaturgo"), o mesmo poderia ser dito, estranhamente, sobre a sua infância.
A Gladys de Oates é uma ex-atriz que se tornou reveladora de filmes para um estúdio cinematográfico (Gladys era, historicamente, uma editora de negativos). Quando Gladys sofre um colapso nervoso, Norma Jeane é exilada para um orfanato e, mais tarde, para um lar adotivo onde seu corpo em botão perturba o equilíbrio da família.
Sua mãe adotiva a pressiona a se casar cedo, e o casamento acaba quando o marido, incapaz de atender a todas as suas carências, se alista na marinha mercante durante a Segunda Guerra Mundial. Um fotógrafo a "descobre" trabalhando em uma fábrica, e ela começa a trabalhar como modelo de fotos ousadas, enquanto procura uma brechinha no cinema.
A descrição que Oates faz de sua vida nos subúrbios operários de Hollywood captura a sinistra lassidão que ainda persiste em certas partes de Los Angeles; é quase como se a vitalidade de todos tivesse sido sugada para alimentar a máquina de ilusões que funciona ali ao lado.
Norma Jeane passa grande parte de sua infância em um bangalô com as janelas fechadas, com Gladys deitada em uma colcha suja, enlouquecendo gradativamente, ou no carro de sua mãe, sendo levada a passeios lentos pelas ruas em que moram os astros, hipnotizada pelas histórias de Gladys sobre o homem misterioso e poderoso que a gerou e que um dia irá recuperá-las ambas.
No começo de seu casamento, ela se perde nos "prazeres rítmicos, repetitivos, hipnóticos do trabalho doméstico" em um apartamento sonolento em Mission Hill. Quando Norma Jeane começa a procurar as agências de modelos de terceira categoria, Oates não precisa descrever a sequência de salas de espera enfadonhas onde a poeira se assenta sobre os móveis baratos, revestidos de vinil. É quase possível farejá-las.
O suor é uma preocupação dominante nesse romance, e, em seu primeiro terço, a maioria dos personagens aparece pelo menos uma vez com grandes manchas de suor nas axilas.
Manter a tênue sofisticação social que as separa de suas raízes operárias é, para Gladys e Norma Jeane, frequentemente uma complicada questão de manter a limpeza e o frescor; Norma Jeane reconhece a insanidade de sua mãe pelo nariz, em seu "cheiro sujo azedo afermentado". As menstruações de Monroe, doloridas e copiosas, só fazem aumentar o seu terror de "suar até esgotar o desodorante em um dia férvido de verão. O terror de cheirar mal, o terror de manchar um vestido".
Oates vê Monroe como uma atriz forte, instintiva, sabotada e torturada por um mundo masculino que tanto desejava quanto desprezava seu corpo. Encontrando por acaso uma de suas fotos como pin-up, o pai adotivo de Marilyn sente "um desejo torturante e, ao mesmo tempo, uma profunda repulsa, como se tivesse mordido algo podre"; esse tipo de resposta distorcida perturba Norma Jeane ao longo de toda a sua vida. "Blonde", ainda que às vezes sentimental e desleixado, é talvez o mais feroz dos tratados de ficção já escritos sobre o inabitável grotesco da feminilidade.
Ninguém incorporou a feminilidade melhor do que Marilyn Monroe, que criou uma persona que parecia existir apenas para o sexo e ao mesmo tempo não prestar muita atenção nele, dotada de um erotismo que era todo resposta e nenhum desejo.
De que outra maneira atender a uma sexualidade masculina que se odeia e exige que as mulheres recebam e portem esse ódio como mulheres leais limpando a sujeira deixada pelas violentas bebedeiras de seus maridos?
Para Oates, essa rapacidade gelada dos homens atinge seu ápice em duas figuras: John F. Kennedy, que seduz Marilyn e depois a trata com desprezo, e um agente do governo criado à maneira de Don DeLillo (mas não muito convincente), conhecido apenas como "Tiro Certo", que a espiona. Mas mesmo os homens que amaram Marilyn, como Miller, diz Oates, a martirizaram diante de uma visão idealizada, e por isso truncada, do eterno feminino: Marilyn como uma fonte de doçura simples em uma paisagem envenenada, como um objeto a ser resgatado.
Há muito fascinada pelo erotismo do domínio e da submissão, Oates frequentemente acompanhou esses interesses até o território do "grand guignol". Ela escreveu romances em que os personagens centrais eram baseados no assassino serial canibal Jeffrey Dahmer e na desafortunada e moribunda Mary Jo Kopechne (vítima de afogamento depois de um acidente de carro envolvendo o senador Edward Kennedy), com resultados que muitas vezes soam histriônicos e sobrecarregados em termos de metáfora. Com Monroe, porém, Oates não tem como ir longe demais; seu tema tem proporções de cinemascope, é um titã inconteste na imaginação mítica dos Estados Unidos, de modo que não há como fazê-la vulgar em excesso ou grandiosa demais.
A flexibilidade que permite alguns momentos de um kitsch genuinamente terrível (particularmente a expressão de um desdém continuado sobre arquétipos cinematográficos conhecidos como "O Príncipe Escuro" e a "Princesa Loira") também dão à autora a liberdade para escrever a seguinte passagem sobre o último filme de Marilyn, "Os Desajustados":
"Havia uma teimosa integridade. Os personagens se assemelhavam a atores alquebrados. Rostos famosos, mas mudados de alguma forma. Você olhava Gay Langland e pensava se ele um dia não fora Clark Gable. Olhava o combalido campeão de rodeio Perce Howland e lembrava com assombro que ele foi Montgomery Clift um dia. Trata-se de pessoas que você conheceu quando criança. Gay Langland era um tio solteiro; Roslyn Taylor, uma amiga de sua mãe, uma divorciada de cidade pequena...".
"O astro de rodeio era um sujeito sem eira nem beira, magro, de olhos tristes, com um rosto arruinado. Podia-se encontrá-lo no começo da noite em frente à estação de ônibus, fumando e olhando fantasmagoricamente em sua direção. Ei, você me conhece? Eram norte-americanos comuns dos anos 50, mas misteriosos para você porque os conhecera muito tempo atrás, quando o mundo era misterioso e até mesmo o seu rosto, contemplado no espelho, por exemplo, da máquina de cigarros em uma estação de ônibus ou em um espelho molhado por sobre a pia de um lavatório, era um mistério insolúvel."
Oates também descreve "Os Desajustados" como a única ocasião em que Monroe pode expressar em sua arte a raiva que poderia tê-la libertado. Mas mesmo esse retrato generoso de Norma Jeane parece estranhamente restrito. O que falta é, em parte, a raiva que ela devia sentir, mas principalmente sua força de vontade. As dificuldades que ela enfrentava para ter um filho a forçaram a passar por 12 abortos.
Seu estrelato, por mais que ela tenha vindo a odiá-lo, foi produto de anos de esforço determinado, e ela lutou ferozmente com o estúdio por controle; talvez seu maior erro tenha sido acreditar que podia ganhar esse jogo, mas ainda assim ela tentou vencer.
Porém a Norma Jeane de Oates não procura a câmera; é caçada por ela. Aquele primeiro fotógrafo "a perseguiu em meio às fuselagens e não aceitava um não como resposta". A licença poética de Oates ao usar um aborto por 12 transforma em infortúnio doloroso aquilo que deve ter sido uma política determinada.
Será que a autora não consegue admitir a vontade de Norma Jeane, ou Norma Jeane mesma é que não a vê? A atriz já vê sua personalidade como dividida -ela contém Norma Jeane, "a atriz loira", "Marilyn" e uma impostora lastimável conhecida como "a criada pedinte". Oates poderia ter imaginado uma presença invisível a Norma Jeane que dirige todo o conglomerado. O romance de Oates é prejudicado por jamais ficar claro se esse ponto cego é da autora ou do personagem.
Tanto a Norma Jeane de Oates quanto a mítica Marilyn devem sua capacidade de fascinar à sua condição de vítimas. Às vezes a potência dos ícones culturais está mais nos fantasmas das emoções exiladas por sua simplicidade radical -o maricas em John Wayne, o nerd em James Dean e a parte da doce e indefesa Marilyn Monroe que era, em última análise, o piloto de sua alma.


Laura Miller é editora da revista "Salon.com" na Internet
Tradução Paulo Migliacci

Blonde
Autor: Joyce Carol Oates
Editora: Ecco Press
Quanto: US$ 22 (737 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com


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