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CINEMA/ESTRÉIA
"Elogio ao Amor", novo filme do cineasta francês, parte de manifestações do sentimento para a atualidade
Godard traz sua visão pluralista do amor
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O que é "Elogio ao Amor"?
Não se pode responder essa
pergunta sem fazer outra previamente: o que Jean-Luc Godard
entende por amor?
Isso inclui o amor romântico,
sem dúvida, mas não só. Existe o
amor pela beleza, pela verdade,
pela memória, pela cidade, pelo
cinema. O amor é múltiplo e não
pode ser resumido em uma história. Uma história é parte da história da história dos homens e não
se desvincula dela, como bem
lembra Edgar -o jovem autor
que busca elementos para um filme (ou uma ópera ou um romance) sobre o assunto.
É verdade que usar a expressão
"sobre o tema" já é trair a empreitada godardiana. Ele nunca trabalha sobre algo, mas em algo. Não
há um tema que ele toma como
objeto. Existe uma série de elementos que vão se agregando. Alguns são documentais, outros ficcionais, outros ainda ensaísticos.
Mas na enxurrada de dados que
nos são lançados, alguns podem
ser isolados e conectados ao conjunto fascinante deste filme.
Isolemos um trecho sublime: na
rua, deitado no chão, há um casal
de idosos. Edgar se pergunta: por
que criar as coisas, quando elas
estão aí? Imediatamente, a mulher enrola-se no cobertor e aperta-se ao homem. De certa forma,
aí está tudo dito sobre o amor.
Ao mesmo tempo essa cena fala
de muitas outras coisas. Por um
lado há a multidão de mendigos
que hoje invade Paris -uma das
cidades mais ricas da Europa. Por
outro, há o Estado. Ou por outra:
a incapacidade do Estado atual de
abrigar os pobres. Por fim, o gesto
da mulher que, amorosamente,
une seu corpo ao do homem.
Amorosamente? Talvez não. Talvez não só: um corpo serve, no caso, para aquecer o outro.
Uma cena em Godard nunca se
contenta em dizer uma só coisa.
Os sentidos explodem de todas as
partes. Dos gestos, dos sons arbitrários das palavras, das imagens.
Isso não significa que "Elogio ao
Amor" seja incompreensível. Ao
contrário da lenda ("coisa obscura etc."), certos aspectos são muito precisos e mesmo recorrentes
no cinema de Godard.
Um deles é o aspecto da atualidade. Em um Godard estamos
sempre diante das coisas do presente. Em "Forever Mozart", era a
Europa e suas guerras (reflexão
sobre a Bósnia, mas também sobre a União Européia). Desta vez,
é o neoliberalismo: as transformações do Estado, o fim das lutas
operárias e a crise do emprego
(personificadas nas imagens da
grande fábrica abandonada da
Renault).
Talvez seja sinônimo, talvez
não, mas quem fala neoliberalismo logo entende globalização. E
globalização puxa América e os
americanos.
Godard não afrouxa. Americanos quem? Os brasileiros são
americanos, mas são brasileiros.
Sim, mas nós somos do sul. E os
mexicanos? São americanos do
norte, mas são mexicanos, não
"americanos".
Existe aí uma evidente provocação dirigida ao processo de dominação do mundo pelos EUA. Processo que envolve também a negação da história.
Por essa via, Godard chega também a seu alvo preferido nos últimos anos: Steven Spielberg. É como se Godard pensasse nele
quando Edgar constata a inutilidade de inventar as coisas, desde
que "elas já estão aí".
Para Godard, Spielberg é a traição do cinema -e isso não é
questão de inveja: o cinema não
inventa nada, ele capta o mundo,
rouba coisas ao mundo e as redispõe. Rouba para refletir. Nesse
sentido, o filme não é um reflexo
do mundo, mas uma reflexão que
emerge de imagens, imagens que
são não uma representação, mas
uma essência revelada das coisas.
Em um momento de mais pessimismo, Godard parecia duvidar
de sua atividade, do sentido de
sua empreitada, do abandono a
que foi relegado. "Elogio ao
Amor" é um filme triste, mas
cheio de vigor. Um filme difícil,
porque não concede nada. Mas
também um filme da evidência: é
possível até perder-se, às vezes,
nas séries que Godard desenvolve. É impossível, por um instante
sequer, negar a beleza de suas
imagens e a força de suas idéias.
Elogio ao Amor
Eloge de l'Amour
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França, 2001
Com: Bruno Putzulu, Cecile Camp e Jean
Davy
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
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