São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

"Elogio ao Amor", novo filme do cineasta francês, parte de manifestações do sentimento para a atualidade

Godard traz sua visão pluralista do amor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O que é "Elogio ao Amor"? Não se pode responder essa pergunta sem fazer outra previamente: o que Jean-Luc Godard entende por amor?
Isso inclui o amor romântico, sem dúvida, mas não só. Existe o amor pela beleza, pela verdade, pela memória, pela cidade, pelo cinema. O amor é múltiplo e não pode ser resumido em uma história. Uma história é parte da história da história dos homens e não se desvincula dela, como bem lembra Edgar -o jovem autor que busca elementos para um filme (ou uma ópera ou um romance) sobre o assunto.
É verdade que usar a expressão "sobre o tema" já é trair a empreitada godardiana. Ele nunca trabalha sobre algo, mas em algo. Não há um tema que ele toma como objeto. Existe uma série de elementos que vão se agregando. Alguns são documentais, outros ficcionais, outros ainda ensaísticos.
Mas na enxurrada de dados que nos são lançados, alguns podem ser isolados e conectados ao conjunto fascinante deste filme.
Isolemos um trecho sublime: na rua, deitado no chão, há um casal de idosos. Edgar se pergunta: por que criar as coisas, quando elas estão aí? Imediatamente, a mulher enrola-se no cobertor e aperta-se ao homem. De certa forma, aí está tudo dito sobre o amor.
Ao mesmo tempo essa cena fala de muitas outras coisas. Por um lado há a multidão de mendigos que hoje invade Paris -uma das cidades mais ricas da Europa. Por outro, há o Estado. Ou por outra: a incapacidade do Estado atual de abrigar os pobres. Por fim, o gesto da mulher que, amorosamente, une seu corpo ao do homem. Amorosamente? Talvez não. Talvez não só: um corpo serve, no caso, para aquecer o outro.
Uma cena em Godard nunca se contenta em dizer uma só coisa. Os sentidos explodem de todas as partes. Dos gestos, dos sons arbitrários das palavras, das imagens.
Isso não significa que "Elogio ao Amor" seja incompreensível. Ao contrário da lenda ("coisa obscura etc."), certos aspectos são muito precisos e mesmo recorrentes no cinema de Godard.
Um deles é o aspecto da atualidade. Em um Godard estamos sempre diante das coisas do presente. Em "Forever Mozart", era a Europa e suas guerras (reflexão sobre a Bósnia, mas também sobre a União Européia). Desta vez, é o neoliberalismo: as transformações do Estado, o fim das lutas operárias e a crise do emprego (personificadas nas imagens da grande fábrica abandonada da Renault).
Talvez seja sinônimo, talvez não, mas quem fala neoliberalismo logo entende globalização. E globalização puxa América e os americanos.
Godard não afrouxa. Americanos quem? Os brasileiros são americanos, mas são brasileiros. Sim, mas nós somos do sul. E os mexicanos? São americanos do norte, mas são mexicanos, não "americanos".
Existe aí uma evidente provocação dirigida ao processo de dominação do mundo pelos EUA. Processo que envolve também a negação da história.
Por essa via, Godard chega também a seu alvo preferido nos últimos anos: Steven Spielberg. É como se Godard pensasse nele quando Edgar constata a inutilidade de inventar as coisas, desde que "elas já estão aí".
Para Godard, Spielberg é a traição do cinema -e isso não é questão de inveja: o cinema não inventa nada, ele capta o mundo, rouba coisas ao mundo e as redispõe. Rouba para refletir. Nesse sentido, o filme não é um reflexo do mundo, mas uma reflexão que emerge de imagens, imagens que são não uma representação, mas uma essência revelada das coisas.
Em um momento de mais pessimismo, Godard parecia duvidar de sua atividade, do sentido de sua empreitada, do abandono a que foi relegado. "Elogio ao Amor" é um filme triste, mas cheio de vigor. Um filme difícil, porque não concede nada. Mas também um filme da evidência: é possível até perder-se, às vezes, nas séries que Godard desenvolve. É impossível, por um instante sequer, negar a beleza de suas imagens e a força de suas idéias.


Elogio ao Amor
Eloge de l'Amour     
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França, 2001
Com: Bruno Putzulu, Cecile Camp e Jean Davy
Quando: a partir de hoje no Cinesesc



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