São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"UM AMOR DE BORGES"

Cineasta se perde ao tentar "humanizar" e mostrar lado romântico do escritor argentino

Torre cria perso nagem biogr áfico carica to

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Ele passou a vida entre os livros, utilizou sua grande erudição e a cegueira progressiva de que foi vítima a serviço de sua ficção. Também amou de forma incondicional a cidade em que nasceu, Buenos Aires, e tinha idéias políticas e moral conservadoras.
Estes são alguns aspectos bastante conhecidos da biografia do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), um dos mais importantes autores latino-americanos, retratado no longa "Um Amor de Borges", que estréia hoje.
Por um lado, o filme exacerba essas características do escritor, a ponto de transformá-lo num personagem caricato e artificial. Por outro, o diretor Javier Torre falha no que parece ser seu intuito principal: o de mostrar um lado mais "humano" e romântico do autor.
A história se passa em 1944, quando Borges tem 45 anos e trabalha numa biblioteca municipal. Conhece então Estela Canto, uma jovem que se dedica a um programa de rádio e faz traduções.
Os dois se apaixonam, mas logo fica claro o abismo que existe entre ambos. Ela é uma jovem de esquerda, idealista, usa calças compridas e prega o sexo livre. Ele tem uma vida reclusa, controlada pela mãe e por rígidos valores morais.
O filme é baseado no livro "Borges a Contraluz", escrito e publicado por Estela depois da morte do escritor. Borges aparece como um indivíduo completamente inábil para a vida em sociedade, vacilante ao falar em público, dominado pelas mulheres à sua volta e ingênuo no amor. Na Argentina, a produção foi criticada por mostrar Borges como lunático.
O autor retratado no filme já teria passado por sua fase européia -entre os anos de 1914 e 1921, em que toma contato com as vanguardas e a filosofia- e sua fase "regional" -em que volta à Argentina e redescobre sua cidade natal em livros como "Fervor de Buenos Aires" (1923). Cronologicamente, portanto, em "Um Amor de Borges" encontraríamos o autor em sua fase mais "labiríntica" e voltada ao fantástico, que originou livros como "História Universal da Infâmia" (1935) e "Ficções" (1944).
O que, portanto, poderia haver de mais interessante neste recorte biográfico seriam os bastidores da criação de "O Aleph", em que Borges investiga um ponto onde se encontrariam todos os lugares do mundo. Este é um dos textos mais importantes da obra do argentino e foi dedicado a Estela.
No filme, entretanto, a concepção de "O Aleph" aparece descontextualizada da trajetória intelectual do autor. O caminho de suas leituras vira um amontoado de citações desconexas, reduzidas a galanteios que dirige a Estela. Torre poderia ter feito um excelente filme apenas pelo período da vida de Borges que escolheu. Perdeu uma grande oportunidade.


Um Amor de Borges
Un Amor de Borges   
Direção: Javier Torre
Produção: Argentina, 1999
Com: Jean Pierre Noher, Inés Sastre
Quando: a partir de hoje no Cineclube DirecTV



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